Feminismo como Anarquismo

Lynne Farrow

 

O feminismo pratica o que o anarquismo defende. Poderíamos até alegar que feministas são os únicos grupos de protesto existentes que podem honestamente ser chamados de anarquistas; primeiro, porque as mulheres se aplicam a projetos específicos como clínicas de aborto e creches; segundo, por serem essencialmente apolíticas, a maioria das mulheres se recusa a entrar nos termos de combate político da direita ou da esquerda, o reformismo ou a revolução, respectivamente.

Mas a preocupação das mulheres por projetos específicos e por suas atividades a-políticas constituem uma grande ameaça tanto para a direita quanto para a esquerda, e a história feminista demonstra como as mulheres têm sido atraídas para longe de seus interesses, cooptadas em um nível legislativo pelos partidos estabelecidos e cooptadas em um nível teórico pela esquerda. Esta cooptação frequentemente nos impediu de perguntar: exatamente qual é a situação feminista? Qual é a melhor estratégia para a mudança?

O primeiro impulso em direção à libertação feminina veio nos anos 1840, quando liberais estiveram no meio de uma tempestuosa campanha abolicionista. Um grande número de eloquentes mulheres quacres fez discursos ativamente para libertar o sistema escravista do sul e em breve percebeu que os direitos básicos que eram negados ao povo negro também eram negados às mulheres. Lucy Stone e Lucretia Mott, duas das mais bravas abolicionistas, colocavam ocasionalmente algumas ideias feministas no fim dos discursos de abolição, perturbando em um nível incomum seus colegas liberais. Mas as mulheres não seriam uma ameaça enquanto conhecessem seu lugar e se lembrassem de qual causa era a mais séria.

Então, em 1842, a convenção mundial antiescravidão foi realizada em Londres, e algumas mulheres dos Estados Unidos cruzaram o Atlântico com outros defensores da abolição para descobrirem que não apenas era negado às mulheres uma participação nos anais, mas pior, elas eram forçadas a se sentar atrás de uma cortina. Lucretia Mott e Elizabeth Cade Stanton, enraivecidas com a hipocrisia do encontro antiescravidão dos liberais ao negar a participação das mulheres, decidiram então retornar aos Estados Unidos e se organizar em prol da libertação das mulheres.

A primeira Convenção dos Direitos das Mulheres foi realizada em Seneca Falls, Nova Iorque, em 1848, atraindo com apenas um aviso de três dias em um jornal local um número enorme de mulheres, que encheram a igreja na qual se encontraram. Ao final da comovedora convenção, o encontro redigiu uma Declaração de Direitos e Sentimentos baseada na Declaração de Independência, porém dirigida aos homens ao invés de ao Rei George, da Inglaterra. Após essa convenção, a qual é identificada como o começo formal do Movimento dos Direitos das Mulheres nos Estados Unidos, o feminismo rapidamente seguiu visando leis de propriedade feminina e outras queixas.

À medida em que o feminismo reunia um pequena quantidade de apoio nos Estados Unidos, os liberais ficavam nervosos por estas mulheres estarem gastando energia no problema da mulher ao invés de no problema real da época: a abolição. Afinal, eles insistiam, esta é a “hora dos pretos”, e as mulheres não deveriam ser tão mesquinhas pensando em si mesmas em uma hora como essas. Quando a Guerra Civil se tornou iminente, essa retórica cresceu da sutileza para uma indignação honrada. Como as mulheres poderiam ser tão antipatriotas ao ponto de se dedicarem ao feminismo durante um crise nacional? Virtualmente, toda feminista nos Estados Unidos suspendeu sua consciência feminista e forneceu seu apoio aos interesses liberais nesse momento, seguras de que, quando a guerra acabasse e o povo negro recebesse direitos iguais sob a constituição, as mulheres seriam incluídas.

Susan B. Anthony, uma ardente abolicionista, era a única feminista conhecida na época que se recusou a engolir a proposta dos liberais. Ela continuou rogando pelos direitos das mulheres, apesar da desintegração gradual de seu grupo apoiador, que foi cooptado pelos abolicionistas para se juntar a suas fileiras. Ela insistiu que ambas as lutas poderiam ser realizadas simultaneamente e que, se isso não fosse feito, as mulheres seriam esquecidas após a guerra. Ela estava certa. Quando a 14ª emenda foi apresentada ao Congresso depois da guerra, não somente as mulheres foram omitidas, mas também foram especificamente excluídas. Pela primeira vez a palavra “masculino” foi escrita na Constituição, deixando claro que, quando ela se referia a uma pessoa, isso equivalia à pessoa masculina.

Este golpe substancial ao feminismo organizado prejudicou o avanço legal posterior das mulheres. Então, perto de 1913, quando mulheres britânicas lançaram suas táticas militantes explodindo prédios e provocando incêndios, Alice Paul, uma entusiasmada mulher estadunidense jovem, de descendência quacre, viajou para a Inglaterra para estudar e terminou trabalhando com as notórias Pankhursts. Ela retornou aos Estados Unidos determinada a rejuvenescer a causa do sufrágio, e em breve persuadiu a National Woman’s Suffrage Association (“Associação Nacional do Sufrágio das Mulheres), praticamente sem funcionamento, a reabrir a campanha federal pelo sufrágio em Washington.

Em um período muito curto de tempo e devido a nada além de sua completa genialidade para a organização e para a estratégia, Alice Paul criou um movimento multifaccional notável. Sua tática mais efetiva foi fazer um piquete na Casa Branca com cartazes, denunciando a posição autoritária do Presidente Wilson quanto ao sufrágio feminino enquanto ele pregava democracia no exterior. A Primeira Guerra Mundial se aproximava firmemente e o palco estava novamente preparado para a cooptação das mulheres.

Pacifistas imploraram para que as mulheres suspendessem sua causa temporariamente e se juntassem ao esforço de paz, ao mesmo tempo em que a maioria, os falcões de guerra, se escandalizava devido às mulheres terem abandonado seu país em um tempo como esse. De novo, as mulheres foram cooptadas, já que milhares deixaram a causa feminista para ir ao auxílio de seus partidos, mas, ainda assim, um grupo pequeno e eficiente, o Partido Nacional das Mulheres, permaneceu intacto para lutar pelo sufrágio.

É difícil assegurar qual lado, a direita ou a esquerda, foi mais responsável por cooptar os esforços feministas para a mudança. A história nos assegura de que seus métodos foram idênticos e de que sua confiança inquestionável na prioridade da “luta maior” inevitavelmente leva a uma dispensa das questões feministas como tangenciais. A análise do movimento negro da época e da esquerda dominada pelos marxistas esmagava sintomaticamente as mulheres em seus planos, ou seja, afirmavam que quando a luta essencial fosse lutada e vencida, as mulheres voltariam então para a sua luta. As mulheres devem esperar. As mulheres devem ajudar a causa maior.

A poesia das mulheres negras se identifica intensivamente com a construção de egos dos homens negros da forma convencional como os egos são construídos, pela autodepreciação. O tema ouvido repetitivamente conta sobre o orgulhoso sofrimento da mulher negra nas mãos do homem negro, que foi emasculado por seu chefe branco, e então precisa se sentir superior pelo menos a sua mulher. Ela faz a sua parte. Seu sofrimento é uma contribuição direta à luta negra (masculina), que ela considera um sacrifício nobre. (Como Germaine Greer sugeriu, já que as mulheres não possuem qualquer poder para ameaçar, elas não podem ser castradas e, portanto, ninguém vê sua falta de poder como nada além de natural, e ninguém irá se deitar para ser chutado pelas mulheres.) Ao passo que a falta de poder do homem negro é somente temporária, já que ele é um homem, ele tem o poder em potencial do homem branco. Tudo que ele precisa é de uma mulher para dominar da forma como o homem branco o dominou e sua estatura será restabelecida. Negras e negros desafiaram a supremacia branca pela percepção de que a negritude é linda. Elas e eles ainda precisam questionar o modelo de família branco, a família patriarcal, como algo a ser desejado e, portanto, ainda sustentam a supremacia masculina.

Juliet Mitchell é uma feminista marxista cujas ideias, como em Woman’s State (“O Estado Feminino”, Pantheon Books, 1971, p. 23), tipificam o estilo conceitual de interpretar as queixas muito concretas de um grupo, como aquelas das feministas, como sendo basicamente irrelevantes à luta maior ou sintomáticos da mesma, onde todos os grupos participam de abstrações chamadas de ideologias. Previsivelmente, se contradições são encontradas na teoria, Mitchell pede um “panorama”, uma abstração que irá se alargar para acomodá-las. Quando grupos de interesse como estudantes, mulheres, negras e negros ou homossexuais formulam suas prioridades derivando diretamente de sua situação, Mitchell os acusa de possuírem uma visão irremediavelmente reduzida, recusando a ver suas necessidades como um sintoma. O que precisam entender, ela continua, é o “totalismo”, a análise para terminar todas as análises.

 

A consciência política totalmente desenvolvida de uma classe ou de grupo oprimido não pode vir de dentro de si, mas somente do conhecimento das interrelações (e das estruturas de dominação) de todas as classes na sociedade… isto não significa uma compreensão imediata das formas pelas quais outros grupos e classes foram explorados, mas significa o que poderiam chamar de ataque “totalista” ao capitalismo, que pode levar a perceber a necessidade de solidariedade com todos os outros grupos oprimidos.

 

Mitchell poderia facilmente ser acusada de imperialismo conceitual, considerando que os termos “totalistas” que ela usa servem para devorar termos menores, os reduzindo a categorias subsidiárias sob a autoridade de sua ideia marxista original. De acordo com Mitchell, grupos individuais respondendo de sua própria maneira aos seus próprios interesses devem aprender a enxergar o caminho e se sacrificar. Sua ideia de que eles devem renunciar à sua preocupação individual pelo bem do total é uma abstração que deixou de representar quaisquer interesses, já que ela veio a se tornar tão grande que já não consegue se relacionar a interesses diversos de qualquer forma.

 

A posição totalista é a precondição para sua realização, mas ela precisa diversificar sua atenção ou ficará atolada na lama do chauvinismo negro, que é o equivalente cultural e racial do economismo da classe trabalhadora, não enxergando além de sua própria raiva.

 

As ideias de Mitchell invalidam todas as formas de individualismo, da mesma maneira que a esquerda organizada e a direita organizada cooptaram historicamente as mulheres do trabalho em seus próprios interesses. Pede-se que as mulheres sejam “totalistas” da mesma forma como se pede que cidadãs e cidadãos sejam “patriotas”. Estão nos pedindo que troquemos um tipo de paternalismo por outro. Nos pedem que obedeçamos uma meta-análise hierárquica que não podemos nem com a fé mais remota pressupor que tenha qualquer conexão com nossa queixa imediata. Supõe-se que o que é bom para todo mundo é bom para um indivíduo.

Com o espectro do totalismo aproximando-se intimidadoramente sobre nós, somos convocadas a justificar e racionalizar a autenticidade de nossos interesses, ou seja, paramos de perseguir nossa causa e somos puxadas para a teia diversiva de defendê-la. Nós estamos tão acostumadas a pensar em termos dos interesses de um grupo como sendo mais significativos, mais básicos, do que os de outro que nós somos engodadas à autorracionalização, ao invés de questionar o valor de colocar um grupo contra outro em primeiro lugar.

A abordagem “totalista” não somente causa tanta confusão quanto a qual causa é anterior, mas também sugere que quando a natureza do problema é totalista, então a solução também deve sê-lo, o que nos traz ao lugar no qual as mulheres sempre foram trapaceadas. Grupos podem funcionar sob a ilusão de que “estão todos juntos nisso” apenas por certo tempo, geralmente enquanto estão teorizando, por exemplo, como as promessas feitas às feministas durante a Guerra Civil. Quando se trata de fazer algo em específico sobre essa situação abstratamente desenhada, não se pode tão facilmente procurar e destruir o inimigo totalista. As soluções, em suma, necessariamente implicam em escolhas específicas a serem feitas sobre o que será feito primeiro e para quem. Logo, à causa mais eficiente em coagir outrem será dada prioridade e as outras irão esperar. Ou isso ou a solução totalista será tão difusa que mobilizará energias que não ajudarão ninguém. As mulheres perdem de qualquer forma quando veem sua luta contra o sexismo dentro do contexto de qualquer luta maior.

Se a luta feminista não é tangencial a ou subsidiária de outros movimentos políticos, então como ela pode ser caracterizada?

Devido à maioria das mulheres viver ou trabalhar com homens por pelo menos parte de suas vidas, elas possuem uma abordagem radicalmente diferente de outrem aos problemas que encaram com o que seria ordinariamente chamado de “o opressor”. Já que uma mulher geralmente tem interesse em manter um relacionamento com homens por razões pessoais ou profissionais, o problema não pode somente ser reduzido a ou localizado com homens. Primeiro, isso implicaria na remoção deles da situação como solução, o que, é claro, está contra seu interesse. Segundo, focar na fonte do problema não é necessariamente o problema. É um erro localizar um conflito com certas pessoas ao invés de com o tipo de comportamento que toma lugar entre elas.

Parece seguir daí que as mulheres, por causa de seu interesse em preservar um relacionamento com homens, devem se identificar com sua condição de maneira completamente diferente, necessariamente situacionista. Segue daí que as energias do feminismo serão centradas em problemas, ao invés de centradas em pessoas (ou lutas). A ênfase não será direcionada para a competição no estilo nós-contra-eles, com um opressor mitológico para certos privilégios, mas sim em uma fuga da colocação de uns lados contra outros. Por exemplo, se uma situação competitiva existe entre os sexos, aprender caratê somente reforçará a estocagem de armas, em ambos os lados; os termos da luta não mudam o balanço de poder em ambos os lados.

Feminismo como situacionismo significa que a análise social elaborada e as causas primeiras à moda de Marx seriam supérfluas, porque as mudanças terão raiz nas situações das quais os problemas se ramificam; ao invés disso, a mudança será idiossincrática para as pessoas, para o tempo e para o lugar. Essa abordagem geralmente foi vista como impopular porque não respeitamos a solução de problemas de pessoa a pessoa, ou temos vergonha dela, ou ambos. Caracterizamos essas preocupações como mesquinhas se elas não parecem ser imediatamente identificadas com quaisquer interesses em larga escala ou se essas preocupações não podem ser universalizadas como um “sintoma de alguma condição maior”. Discutir o “chauvinismo macho” é tão infrutífero quanto discutir o “capitalismo” no sentido que, seguramente reduzido a uma explicação, nos distanciamos eficientemente do problema e da necessidade de interagir imediatamente com ele ou responder a outras pessoas. Tal articulação excessiva dá a ilusão de resposta a uma situação crítica sem nunca realmente chegar a compreender a participação nela.

Originalmente, as feministas foram acusadas de não ter uma teoria abrangente, mas várias pequenas compreensões. Isso causou chacotas na mídia, porque não havia sido feita uma conexão teórica ampla entre coisas como mulheres casadas que pegavam os nomes de seus maridos, creches inadequadas, o uso persistente de “menina” substituindo mulher e mulheres querendo trabalhar em igualdade aos homens. Ao invés dessa diversidade ser vista como força, ela foi vista como fraqueza. Predizivelmente, algumas feministas marxistas aproveitaram a ocasião, se tornando defensoras da causa e tornaram o feminismo teoricamente respeitável, centrando os problemas ao redor da “ideologia da reprodução” e de outras noções vagas do tipo.

O feminismo tradicionalmente tentou encontrar soluções para um fim específico que fossem apropriadas às necessidades do momento, ou seja, centradas na família ou na comunidade de amigas. Entretanto, certas tentativas inescrupulosas, legais e bem divulgadas (bem como teóricas) foram feitas para trazer a libertação das mulheres para o apogeu.

Por exemplo, algumas amigas e eu estivemos recentemente envolvidas na preparação de uma conferência sobre o divórcio. Encontramos algumas palestrantes que descreveriam como conseguir um divórcio e algumas advogadas que dariam conselhos legais gratuitos às mulheres que os quisessem. Várias oficinas foram organizadas ao redor de tópicos que interessavam aquelas envolvidas ou preocupadas com o divórcio. Um número enorme de mulheres da comunidade veio, atraídas por causa do tópico centrado em um problema, mulheres que provavelmente não teriam se identificado com o conceito mistificador de feminismo. Todas participaram entusiasticamente, trocando conselhos, números de telefone, nomes de advogadas. Algumas mulheres choraram nas oficinas, inundadas pelo apoio de mulheres em dilemas similares.

A conferência corria bem até uma palestrante da National Organisation for Women (“Organização Nacional pelas Mulheres”, NOW) fazer uma apresentação sobre a posição nacional oficial sobre o divórcio e os planos da organização para o futuro. Estava inclusa uma proposta de que os casais devem ser capazes de passar por um teste antes de casar, de modo que apenas pessoas qualificadas possam participar deste tipo de arranjo legal. Presumivelmente, quem não conseguisse passar no teste criado pelos legisladores seria desencorajado, prevenindo, desse modo, quaisquer divórcios futuros.

Além da falácia óbvia de acreditar que mais leis irão mudar o que as leis existentes criaram e, dessa forma, salvar as pessoas de si mesmas, a proposta da NOW exemplifica a tentativa de resolver o problema da libertação das mulheres por meios monolíticos arbitrários muito similares à ambição do marxista Branka Magas de “tomar a cultura”. O impulso de coagir as pessoas por leis nacionais é similar ao impulso de criar uma revolução para mudar o balanço do poder. Cada tipo de mudança em larga escala irá encontrar razões para servir seu próprio autoritarismo magnânimo. Além disso, cada um alega que o que é bom para todo mundo é bom para uma pessoa e que, portanto, quaisquer meios podem ser usados para propagar as ambições da revolução, no modelo da corporação.

Essas ocasionais propostas de larga escala levaram as pessoas a crer que existe algo como um movimento de libertação das mulheres não situacionista, um verdadeiro exército clamando em uníssono por reformas nacionais. A mídia o perpetuou. Mas não há movimento feminista propriamente dito. As feministas estiveram ocupadas demais trabalhando nos projetos com base em comunidades dentro de famílias, comunas, locais de trabalho, para focar na construção de uma imagem ou uma identidade para si mesmas. Além disso, uma imagem ou um princípio único para o movimento seria contraprodutivo e colocaria as mulheres na constante comparação de suas vidas com a imagem, monitorando estilos de vida e seu trabalho para ver se estavam em concordância com o “MOVIMENTO”.

Ao mesmo tempo, o “movimento” foi criticado por não ser coeso e por não ter um programa. Exatamente. Essa é a questão. A diversidade na qual as feministas implementam e praticam a mudança é sua força. O feminismo não tem líderes no sentido tenentista pela mesma razão. Não há nada para liderar. Não planejamos qualquer revolução. As mulheres estão fazendo o que podem e onde podem. Não estamos unidas porque as mulheres não se veem como uma classe lutando contra outra. Não concebemos um exército de libertação das mulheres mobilizado contra a tirania masculina. A solidariedade como um fim em si mesma é a substância da qual os governos são feitos, e adaptar esses métodos somente reforça a perspectiva do antagonismo da classe sexual, de nós contra eles. A identificação com outras militantes de maneira tão paranoica encoraja a competição brutal e mantém a disputa em curso. Ademais, enfatizar a solidariedade somente pode levar a uma autoconsciência sobre o que estamos fazendo como personalidades, acentuando, desse modo, nossas diferenças individuais e causando conflitos antes de até mesmo começarmos a nos aplicar aos problemas práticos do sexismo.

Apesar da NOW, o feminismo começa em casa, e geralmente não vai muito além da comunidade.

Parteiras e bruxas praticando seus remédios herbais e artes curandeiras figuram proeminentemente em nossa tradição individualista. As mulheres nas famílias passariam adiante informações sobre como diagnosticar a gravidez, prevenir a concepção, curar infecções, parar hemorragias, prevenir cólicas e aliviar a dor. Silenciosamente, algumas vezes misteriosamente, as mulheres ensinavam para as crianças e para as amigas sem elaborar uma política disso. Sua efetividade inspirou assombro e medo e arriscou ridicularização, mas elas não pararam para explicar ou mistificar o que estavam fazendo, elas simplesmente o fizeram. As descrições misteriosas remanescentes dos métodos das parteiras, um conhecimento feminino passado de mãe para filha, foram menosprezadas como “contos de velhas”.

A atual onda feminista mantém essa tradição individualista no sentido de que os problemas de saúde das mulheres emergiram como a preocupação principal. Pequenos projetos brotaram por todo o país para o propósito de satisfazer as necessidades locais por abortos adequados, controle de natalidade, testes de gravidez e cuidado médico geral. Anteriormente, as mulheres tinham instalações limitadas ou tinham que confiar no paternalismo dos médicos. Novos grupos de mulheres descobriram que há muitos exames de rotina e serviços que podem ser realizados seguramente com pouco ou nenhum custo pelas próprias mulheres.

Tal grupo se organizou ao redor desses interesses no nosso centro de mulheres local, fornecendo vários serviços, como encaminhamento para abortos e informação para a comunidade em frequência diária, à medida em que a demanda surge. Aquelas envolvidas veem sua função como uma ação comunitária que resolve problemas, avaliando as necessidades das mulheres e surgindo com a forma mais eficiente de lidar com aquele problema com os recursos disponíveis. É claro, há coisas que aprendemos que estão dentro de nossa capacidade de fazer e coisas que nós devemos encaminhar para especialistas. Testes de gravidez são feitos de maneira simples e gratuita por voluntárias no centro. Casos de aborto são encaminhados para uma médica competente e cuidadosamente avaliada que cobra uma taxa mínima. Uma lista das melhores e mais baratas clínicas de doenças venéreas foi completada e distribuída em panfletos. O escopo e a ambição de nosso projeto é ditado inteiramente pelos interesses do povo próximo. Nós cooperamos entusiasticamente com outros grupos na troca mútua de informação, mas não temos intenção de expandir. Temos muito a fazer para criar uma análise de nossa política, e não temos tempo para parar e observar o que está acontecendo.

Aonde vamos a partir daqui?

Feministas sempre possuíram uma indiferença exuberante às perguntas “por quê?”, o suporte teórico principal dos homens. “Política Sexual”, de Kate Millet, por exemplo, foi atacada severamente por críticos por gastar todas aquelas páginas não formulando uma teoria sobre o porquê do sexismo existir. Nosso desinteresse à especulação teórica foi construída como sendo uma deficiência particular. É claro. Isso ocorre similarmente com nossa desconfiança da lógica e daquilo que foi passado inescrupulosamente como o conhecimento da situação. Não podemos “argumentar racionalmente”, nos dizem, e provavelmente é verdade que evitamos este tipo de gingado verbal. Mas o fato é que não temos qualquer participação real no jogo. CONHECIMENTO e ARGUMENTO, no que se refere às mulheres, é tão conspicuamente alienígena aos nossos interesses que a irreverência feminina pelas artes intelectuais é raramente escondida. Na verdade, as mulheres parecem considerar a fé masculina nesses processos como um tipo de superstição, porque não parece haver conexão aparente entre essas artes e a manutenção da vida, a preocupação feminina principal.

A ocupação das mulheres é centrada basicamente nos processos de sobrevivência, na coleta de recursos, na alimentação, no vestuário e no abrigo de crianças e na satisfação das necessidades da vida em uma base cotidiana. Nossas energias devem necessariamente ser aplicadas a perguntas “como”, enraizadas em nossas responsabilidades práticas. Observar e avaliar as rotinas de vida devem ser a ocupação dos comparativamente ociosos, daqueles com menos responsabilidades, ou seja, dos homens. De maneira similar, uma piada antiga aponta a importância ilusiva de que os homens revestem seu trabalho: o chefe da família relata aos seus amigos – “Eu tomo as grandes decisões na família, como se a China vermelha deve ser admitida nas Nações Unidas, e minha esposa toma as decisões pequenas, como se nós precisamos de um carro novo e para qual escola as crianças devem ir”.

Devido às mulheres não terem interesse investido em suposições teóricas e suas implicações e, portanto, nenhuma prática na arte do domínio verbal, elas não serão facilmente atraídas a essa mecânica intrincada. Ao invés disso, mesmo meninas jovens adquirem uma desconfiança quase automática (como a Lucy, do quadrinho Snoopy) ao teórico na situação e confiam em sua intuição e em seus instintos do momento para resolver os problemas práticos urgentes. As mulheres suspeitam da lógica e de seus rituais da mesma maneira que pobres suspeitam de nossos labirintos legais. Veladas em mistificação, ambas as instituições funcionam contra seus interesses.

A província de nossos interesses, a atenção às nossas necessidades práticas como mulheres, foi tão séria e consistentemente desvalorizada que escassamente há qualquer coisa que fazemos que seja considerada significativa. Quando nossa conversa é a respeito das pessoas e de seus problemas, ela é pejorativamente referida como fofoca; nosso trabalho, por ser necessariamente repetitivo e caseiro, não é considerado trabalho, mas quando pedimos ajuda com eles chamam de ladainha. Quando não argumentamos logicamente, isso é fonte de grande diversão, e nunca ocorre a ninguém nos perguntar se queríamos perseguir tal capricho competitivo em primeiro lugar.

Precisamos aprender a ver nossos chamados defeitos como vantagens, como uma forma de abordar a vida de problema a problema, de pessoa a pessoa, com raízes na situação individual. Precisamos aprender a valorizar outras maneiras além das tradicionais maneiras de “conhecimento”, e ao invés disso aperfeiçoar nossos sentidos e acelerar nossas respostas às situações nas quais nos encontramos.

Feminismo significa encontrar novas condições para lidar com situações tradicionais, não condições tradicionais para lidar com o que foi chamado de novo movimento. É um erro para nós argumentar a validade de nossa causa; isso implicaria em querermos participar. Isso sugeriria que há uma disputa ocorrendo na qual consentimos entrar, e que haveria um vencedor dominante e um perdedor dominado.

Argumentar pela causa do feminismo é uma forma de apelo, como uma classe impotente pedindo poder ou uma empresa de relações públicas tentando vender algo para um comprador em potencial. Feminismo significa rejeitar todas as condições que nos oferecem para ganhar legitimidade como um movimento social respeitável e redefinir nossos interesses reais à medida em que os alcançamos. Então, quando nosso desinteresse na agressão é chamado de “passividade” e nossa fuga da organização sistemática é chamada de “ingênua”, nós devemos concordar plenamente. De que outra forma você pode conseguir fazer alguma coisa?

 

Publicado originalmente como
“Feminism as Anarchism”

em Aurora, Nova Iorque, 1874
Traduzido por Cami Álvares Santos