Por Que os Anarquistas Não Aceitam a Ação Político-Eleitoral

Edgard Leuenroth

 

Ainda há, mesmo entre pessoas letradas ou que se têm nessa conta, quem faça essa indagação. Destinando-se esse livro à conduta dos anarquistas, torna-se necessário falarmos, embora sumariamente, sobre as razões pelas quais os libertários não aceitam a ação parlamentar, abstendo-se, consequentemente, de votar para a escolha de representantes junto às várias casas legislativas, na base da política partidária. Para esse fim, são aproveitadas as considerações contidas na carta com que o autor deste livro se pronunciou sobre a apresentação de seu nome como candidato a deputado, por ocasião das eleições realizadas no começo de 1918, quando se encontrava preso na Casa de Detenção (então Cadeia Pública), processado como “autor psicointelectual” da greve geral de 1917, que paralisou toda a vida produtiva de São Paulo.

Não hesito em tornar pública a minha consequente resolução, já manifestada a amigos junto às grades do cárcere, de me opor terminantemente à apresentação da minha candidatura, lançada por amigos, talvez alheios à inteireza doutrinária dos princípios libertários, de seus métodos de ação e das normas de coerência a que necessariamente estão adstritos todos quantos os professam.

Não posso, não devo e não quero aceitar a indicação de meu nome para candidato a deputado, embora isso seja feito como uma manifestação de protesto contra uma violência, de repulsa contra a iniquidade com que através da minha pessoa se pretende ferir a classe trabalhadora, da qual sou obscuro militante.

Como libertário, não aceito a ação parlamentar, que implica na delegação de poderes, o que constitui séria divergência doutrinária com o anarquismo. É em obediência a este sábio critério que os libertários, arrostando dificuldades sem conta, lutam incessantemente no sentido de conseguir que cada elemento do povo, libertando-se da mentalidade messiânica imperante, tornando-se senhor de si mesmo, constitua uma unidade ativa na vida social, agindo em causa própria no patrocínio dos interesses que, sendo seus, estão, em harmonia com os da coletividade. Entendem os anarquistas, abroquelados em exemplos, de ontem e de hoje, que não seria decoroso contar com a votação de descontentes ocasionais das várias capelinhas políticas em desarmonia, e bem pouco numerosos seriam os homens animados de espírito liberal que, embora alheios à classe obreira, se sintam revoltados contra as injustiças com ela praticadas e, por isso, poderiam acorrer às urnas. Conclui-se, logicamente, que o protesto teria resultado contraproducente.

Vê-se, pois, que, mesmo sob esse aspecto, a candidatura como protesto é desaconselhável. Tem-se tentado esse ato em outros países, é certo, mais em meios socialmente trabalhados onde a parte dos socialistas concorde com o parlamentarismo se acha fortemente organizada.

Necessário se torna, entretanto, dizer que embora os beneficiados por essas manifestações sui generis de protesto pertencessem aos seus, os anarquistas sempre se lhes opuseram, conservando-se fiéis aos seus princípios, abstendo-se, assim, de contribuir, embora de maneira indireta, para alimentar no povo a confiança em uma instituição por eles condenada.

Sou, portanto, consequente com a minha condição de libertário não querendo intervir nas próximas eleições. Os amigos autores dessa iniciativa, a cujos bons intuitos presto homenagem, estou certo, não me quererão mal por isso, pois que é justamente à firmeza com que me tenho esforçado para sustentar as minhas convicções que atribuo a sua confortadora manifestação de simpatia. E tão eloquentes são as lições dos acontecimentos desenrolados neste excepcional momento histórico que os exemplos de épocas anteriores são dispensáveis para que o ponto de vista libertário, evidenciando chocantemente o seu acerto, se imponha ao critério de quantos se preocupam com problema da questão social.

De fato, se das plagas lusitanas às estepes russas algo de valia se verifica contra a hediondez da guerra e os pruridos de tirania, isso tem partido da ação direta do povo oprimido e explorado em desespero. Em tão tremenda conjuntura, a ação parlamentar, quando deixa de ser inócua, passa a ser danosa ou contraproducente. Por que, pois, reincidir numa experiência já eficientemente realizada, com resultados negativos, em meios que oferecem todas as circunstâncias julgadas necessárias para o desejado bom êxito?

Considerações sem conta poderia ainda aduzir em abono da minha maneira de encarar a ação parlamentar. Julgo-me, porém, dispensado de o fazer, por me parecer ter dito o suficiente para que se possa concordar ou, quando menos, respeitar a resolução por mim, tomada de não aceitar a inclusão de meu nome na lista, já bastante longa, daqueles que, por ambição pessoal, por interesses subalternos da politicagem ou também, segundo os libertários, por um critério político-social, pretendem conseguir das poltronas do Parlamento o que só será conquistado pela ação decidida do povo, que, dos seringais da Amazônia às coxilhas sulinas, suporta o jugo de um regime revoltantemente opressivo.

Nem por se tratar de uma votação de protesto poder-se-á desprezar a repulsa doutrinária do anarquismo à minha participação, como candidato, na eleição de 1º de março. Baseados na história e na experiência de muitas décadas de ação eleitoral, o que urge é intensificar a obra de educação social do povo, fazendo com que ele chegue a ter consciência dos seus direitos e adquira confiança na sua força para deixar de confiar a uns tantos indivíduos guindados às casas legislativas pelo seu voto e pelos seus conchavos politiqueiros – indivíduos esses nem sempre bem intencionados e sempre sujeitos à corrupção imanente do fastígio do poder – aquilo que só ele, em luta perene, poderá e deverá conseguir.

Seria ocioso, e mesmo foge aos limites desta carta, a demonstração da inanidade e até da influência danosa exercida pela ficção parlamentar da luta popular para a conquista de mais elevados estágios sociais. A experiência é grande mestra, e esta nos ensina que o Parlamento, instituição essencialmente burguesa, nunca agiu e jamais poderá agir em detrimento da vigente ordem de coisas, o que corresponde a nada fazer em proveito do povo e da causa pública.

Qualquer melhoria na situação da plebe, por insignificante que seja, representa o resultado de sua própria ação exercida fora das esferas parlamentares. As resoluções dos chamados representantes populares só são efetivadas quando representam o reflexo das conquistas feitas pela pressão partida de baixo, do povo em movimento. De maneira diversa, os seus decretos e suas leis têm sido e continuarão a ser meros farrapos de papel.

Farta messe de exemplos poderia robustecer estas asserções. Sem termos em conta o que se passa entre nós, onde o Parlamento é essa coisa dispendiosa e improdutiva que todas as pessoas de bom senso reconhecem, não poderemos desprezar os ensinamentos que nos vêm de países nos quais a vida parlamentar se desenvolve ao redor de partidos com cronogramas políticos e sociais definidos e sujeitos ao influxo permanente da opinião pública, que aqui, desgraçadamente, por causas múltiplas, ainda não exerce a necessária influência.

 

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Em síntese: — Repudiamos o parlamentarismo e a ação eleitoral, não só pela razão teórica de ser o Parlamento uma instituição autoritária, incumbida de forjar leis obrigatórias, mas ainda por outros motivos teóricos e práticos. Eis alguns.

Quanto ao Parlamento

1º – A assembleia parlamentar é incompetente para decidir sobre qualquer dos assuntos da vida social. Um congresso de técnicos (médicos, engenheiros, sapateiros, etc.), discute com conhecimento de causa o que é de seu ofício; num Parlamento, cada ponto de vista, cada ramo de saber tem sempre para o tratar uma minoria, sendo, no entanto, a maioria que decide.

2º – O seu poder limita-se a formular leis, sendo impotente para as fazer aplicar, quando porventura cheguem a contrariar os interesses das classes dominantes, dos proprietários, que têm nas suas mãos as autoridades, e os próprios favorecidos, seus dependentes, por meio dos salários.

3º – Ambiente burguês e politicamente dominado pelos interesses capitalistas e financeiros exerce uma inevitável corrupção sobre os que para lá entram, vindos do seio do povo trabalhador e animados das melhores intenções.

4º – Dispensa o povo de agir diretamente e entretém as impaciências populares tanto mais eficazmente quanto mais atroadores e “revolucionários” forem os discursos ali proferidos.

Quanto à ação eleitoral

1º – Trata-se de obter número, e para isso fazem-se apenas vagas afirmações, esconde-se o ideal revolucionário e entra-se em combinações e intrigas.

2º – A ação eleitoral e parlamentar chama ao socialismo uma chusma de aventureiros da pequena burguesia, de profissionais da política e do intelectualismo, etc., que corrompem e desviam o movimento. Querendo uma revolução profunda, verdadeiramente social, em que o povo espoliado e oprimido desaproprie o capitalismo e socialize os bens sociais; sabendo que essa revolução não pode ser decretada do alto de seus privilégios, que a emancipação do povo há de ser obra dele próprio, como é lição da História, os anarquistas querem que o povo se habitue, desde já, a agir e associar-se, sem confiar em criaturas providenciais, guias ou dirigentes, líderes ou messias, e sem delegar poderes a pretensos defensores ou protetores.

 

Publicado originalmente em
Verve, nº 2, São Paulo, outubro de 2002