Charlotte Wilson
A vida em comum desenvolveu o instinto social em duas direções conflituosas, e a história de nossa experiência no pensamento e na ação é o registro desta luta dentro de cada indivíduo e sua reflexão dentro de cada sociedade. Uma tendência é em direção à dominação; em outras palavras, em direção à asserção do ego menor e sensual contra o ego similar de outros, sem ver que, por esta atitude, a verdadeira individualidade se empobrece, se esvazia e se reduz à nulidade. A outra tendência é em direção à fraternidade igualitária, ou à autoafirmação e ao cumprimento do ego maior, o único verdadeiro e humano, que inclui toda a natureza, e dissolve, desse modo, a ilusão do mero individualismo atômico.
O anarquismo é o reconhecimento consciente de que a primeira dessas tendências é, e sempre foi, fatal à real união social, quer seja a coerção que ela implica justificada com o apelo à força superior ou à sabedoria superior, ao direito divino ou à necessidade, à utilidade ou à expediência, quer tome a forma da força ou da fraude, da conformidade exata a um sistema legal arbitrário ou um padrão ético arbitrário, do roubo aberto ou da apropriação legal do direito de nascença universal à terra e aos frutos do trabalho social. Ceder a essa tendência é preferir a expediência mais estreita à mais larga, e atrasar a possibilidade do único desenvolvimento moral que pode tornar o indivíduo um todo em sentimento com seus companheiros, e a sociedade orgânica, como estamos começando a concebê-la, um ideal realizável.
As principais manifestações dessa tendência obstrutiva no momento presente são a propriedade, ou o domínio sobre as coisas, a negação da reivindicação de outrem ao seu uso; e a autoridade, o governo do homem pelo homem, personificada no domínio pela maioria; a teoria da representação que, apesar de admitir a reivindicação do indivíduo à auto-orientação, o torna escravo do simulacro que agora se posiciona como sociedade.
Portanto, o primeiro objetivo do anarquismo é afirmar e tornar boa a dignidade do ser humano individual, pelo seu resgate de cada descrição de restrição arbitrária – econômica, política e social; e, ao fazê-lo, tornar aparente em sua verdadeira força as ligações sociais reais que já unem os homens, e que, irreconhecidas, são a verdadeira base da vida comum tal como a que possuímos. Os meios para fazer isso encontram-se dentro da consciência de cada homem e de suas oportunidades. Até que isso seja feito, quaisquer propostas definitivas para a reorganização da sociedade são absurdas. É simplesmente impossível esboçar uma teoria bem geral quanto ao provável rumo da reconstrução social a partir da observação das tendências crescentes.
Anarquistas acreditam que a organização existente do Estado é somente necessária aos interesses do monopólio, e objetivam a derrocada simultânea tanto do monopólio quanto do Estado. Defendem que a “administração dos processos produtivos” centralizada é um mero reflexo do atual governo por representação da classe média sobre a vaga concepção do futuro. Anarquistas buscam, ao invés disso, associações produtivas e distributivas voluntárias que utilizem recursos em comum, trocas frouxamente federadas e comunidades distritais que pratiquem eventualmente o completo comunismo livre na produção e no consumo. Acreditam que em uma comunidade industrial na qual a riqueza é necessariamente um produto social, e não industrial, as alegações que qualquer indivíduo pode justamente fazer para partilhar de tal riqueza são: primeiro, que ele necessita dela; segundo, que ele contribuiu para ela com o melhor de sua habilidade; terceiro (em relação a qualquer artigo em particular), que ele depositou tanto de sua própria personalidade sobre sua criação que ele pode melhor utilizá-lo.
Quando essa concepção da relação entre a riqueza e o indivíduo tiver sido permitida suplantar a ideia que agora é sustentada à força, que a vantagem inerente da posse de riquezas é impedir que outros usem-na, cada trabalhador será inteiramente livre para fazer como a natureza sugere – ou seja, depositar toda sua alma no trabalho que ele escolheu, e torná-lo a expressão espontânea de seu mais intenso propósito e desejo. Apenas sob tais condições a labuta se torna prazer, e seu produto, uma obra de arte. Mas toda a organização coerciva trabalhando com regularidade mecânica é fatal para a realização dessa ideia. Nunca foi provado ser possível que seres humanos perfeitamente livres cooperem espontaneamente com a precisão das máquinas. Ou a espontaneidade ou a artificial ordem e simetria deve ser sacrificada. E como a espontaneidade é vida, e a ordem e simetria de qualquer época são apenas as formas com as quais a vida temporariamente se veste, anarquistas não temem que, ao descartar o sonho coletivista da regulação científica da indústria e não inventar fórmulas para as condições sociais ainda irrealizadas, estejam negligenciando o essencial ao visionário.
Similar raciocínio é aplicável ao aspecto moral das relações sociais. O crime como o conhecemos é um sintoma da tensão sobre o companheirismo humano envolvido nos arranjos sociais falsos e artificiais que são impostos pela autoridade, e sua causa e sanção principais irão desaparecer com a destruição do monopólio e do Estado. O crime resultante do desenvolvimento mental e físico defeituoso pode certamente ser lidado de maneira tanto mais científica quanto mais humana, pelo tratamento médico fraternal e pela educação aprimorada, do que pela força bruta, por mais elaborada e disfarçada que ela seja.
Quanto à expressão da vida comum da comunidade, e da persuasão e da assistência práticas desejáveis para elevar aqueles que ficaram para trás da média do desenvolvimento moral, é suficiente notar o crescimento maravilhoso da opinião pública desde a emancipação do palanque e da imprensa para adquirir ciência de que nenhuma maquinaria artificial é necessária para impor vereditos sociais e códigos de conduta sociais sem a ajuda de leis escritas administradas pela violência organizada. De fato, quando as restrições arbitrárias são removidas, essa forma de domínio da mediocridade universal é, e sempre foi, um sério perigo para a liberdade individual; mas como ela é um resultado natural, não artificial, da vida em comum, ela somente pode ser contraposta pela cultura moral mais ampla.
O anarquismo não é uma utopia, mas uma confiança baseada na observação científica do fenômeno social. Na revolta individualista contra a sociedade e na revolta socialista contra a propriedade privada dos meios de produção, que é a fundação do coletivismo, ele encontra sua questão comum. É um protesto moral e intelectual contra a realidade de uma sociedade que, como Emerson afirma, “está em todos os lugares conspirando contra a humanidade de cada um de seus membros”. Seu único propósito é ocasionar pela ação direta pessoal uma revolução em cada departamento da existência humana, social, política e econômica. Cada homem deve ser livre por si mesmo e por seus companheiros.
Publicado originalmente como
“Anarchism” por
Fabian Society, Londres, 1886
Traduzido por Cami Álvares Santos