Socialismo, Anarquismo e Feminismo

Carol Ehrlich

 

Você é uma mulher em uma sociedade capitalista. Você fica furiosa: com o emprego, com as contas, com seu marido (ou ex), com a escola das crianças, o trabalho doméstico, ser bonita, não ser bonita, ser observada, não ser observada (e, de qualquer forma, não ser ouvida) etc. Se você pensar sobre todas essas coisas e sobre como elas se encaixam e o que deve ser mudado, e então procurar algumas palavras para manter todos esses pensamentos juntos de forma abreviada, você praticamente deve surgir com “feminismo socialista”.[1]

 

Tudo indica que um grande número de mulheres “surgiu” com feminismo socialista como solução para o persistente problema do sexismo. O “socialismo” (em sua assombrosa variedade de formas) é popular com muitas pessoas esses dias, porque ele tem muito a oferecer: a preocupação com as pessoas trabalhadoras, um corpo de teoria revolucionária para a qual as pessoas podem apontar (quer o tenham lido ou não) e alguns exemplos vivos de países industrializados que são estruturados diferentemente dos Estados Unidos e de seus satélites.

Para muitas feministas, o socialismo é atraente porque ele promete terminar com a desigualdade econômica das mulheres trabalhadoras. Além disso, para aquelas mulheres que acreditam que uma análise exclusivamente feminista é muito estreita para englobar todas as desigualdades existentes, o socialismo promete expandi-la, enquanto a protege contra a diluição de sua perspectiva radical.

Por boas razões, então, as mulheres estão considerando se o “feminismo socialista” faz sentido ou não como teoria política, pois feministas socialistas realmente parecem ser tanto sensíveis como radicais – no mínimo, a maioria delas evidentemente sente uma forte antipatia a algumas das armadilhas reformistas e solipsísticas nas quais um número crescente de mulheres vem tropeçando.

Para várias de nós do tipo não romântico, a Nação Amazona, com seus exércitos de matriarcas de membros fortes cavalgando até o pôr do sol, é irreal, mas inofensiva. Um assunto mais sério é a atual obsessão com a Grande Deusa e com vários outros objetos de adoração, bruxaria, magia e fenômenos psíquicos. Como uma feminista preocupada em transformar a estrutura da sociedade, eu acho isso tudo menos inofensivo.

Item 1: Mais de quatrocentas mulheres foram a Boston em abril de 1976 para participar de uma conferência de espiritualidade feminina que tratava em grande parte dos assuntos acima. Será que a energia gasta com cantoria, com a troca das últimas ideias pagãs e com a participação em oficinas de dança do ventre e de rituais menstruais não poderia ter sido investida em um uso melhor e mais feminista?

Item 2: De acordo com relatos de pelo menos um jornal feminista, um grupo de bruxas tentou levitar Susan Saxe para fora da cadeia. Se elas honestamente pensavam que isso libertaria Saxe, então elas estavam totalmente fora de contato com as realidades da opressão patriarcal. Se a intenção era fazer uma piada engraçadinha, então por que ninguém está rindo?

O reformismo é um perigo muito maior aos interesses das mulheres do que os jogos psíquicos bizarros. Eu sei que “reformista” é um epíteto que pode ser usado de maneiras que não são nem honestas nem muito úteis – principalmente para demonstrar a pureza ideológica de alguém, ou para dizer que o trabalho político concreto de um tipo qualquer não vale a pena ser feito porque ele é potencialmente cooptável. Em resposta, algumas feministas argumentaram persuasivamente que os tipos certos de reformas podem construir um movimento radical.[2]

Da mesma forma, há estratégias reformistas que desgastam as energias das mulheres, que geram expectativas de grande mudança e que são enganosos e alienantes porque não podem entregar os benefícios. O melhor (ou pior) exemplo é a política eleitoral. Algumas socialistas (seduzidas pela noção do gradualismo) são conquistadas por ela. Anarquistas são mais sensatas. Você não pode se libertar por meios não libertários; você não pode eleger um novo conjunto de políticas (não interessa o quão simpáticas ao feminismo) para comandar as mesmas velhas instituições corruptas – que, por sua vez, comandam você. Quando o ramo radical da National Organisation of Women (NOW) pede para as mulheres o seguirem “para fora do meio dominante, em direção à revolução” por meios que incluem a política eleitoral, elas irão todas se afogar na profundidade das coisas como elas são.

A política eleitoral é um tipo de armadilha óbvia e cotidiana. Mesmo muitas não radicais aprenderam a evitá-la. Um problema mais sutil é o capitalismo sob o disfarce do poder econômico feminista. Considere, por exemplo, a Feminist Economic Network (“Rede Econômica Feminista”). O nome pode possivelmente te enganar. Ostensivamente, ela era uma rede de negócios alternativos construídos para erodir o capitalismo pelo lado de dentro pela criação de autossuficiência econômica para as mulheres. Essa é uma ideia atraente. No entanto, o primeiro grande projeto da FEN foi aberto em Detroit em abril de 1976. Por uma anuidade de US$100, mulheres privilegiadas podiam nadar em uma piscina privativa, beber em um bar privativo e conseguir descontos em um grupo de butiques. A FEN pagava para suas funcionárias US$2,50 por hora para trabalhar lá. Sua diretora, Laura Brown, anunciou este empreendimento como “o começo da revolução econômica feminista”.[3]

Quando dois dos mesmos velhos jogos – a política eleitoral e o capitalismo moderno – são rotulados como “revolução”, a palavra foi virada ao avesso. Não é surpreendente que um ramo socialista do feminismo pareça ser uma fonte de sanidade revolucionária para diversas mulheres que não querem ser bruxas, guerreiras primitivas, senadoras, ou pequenas capitalistas, mas que querem acabar com o sexismo enquanto criam uma sociedade transformada. O feminismo anarquista poderia fornecer um panorama teórico significativo, mas muitas feministas ou nunca ouviram falar dele ou o descartam como o auxiliar feminino dos machos lançadores de bombas.

O feminismo socialista provém um sortimento de lares políticos. De um lado, há os quartéis encardidos e abarrotados de seitas da velha esquerda como o Partido Comunista Revolucionário (anteriormente conhecido como União Revolucionária), a Liga de Outubro e o Partido Internacional dos Trabalhadores. Muito poucas mulheres os acham habitáveis. Por outro lado, um número considerável de mulheres está se mudando para os estabelecimentos alastrantes e ecléticos construídos por grupos de esquerda mais novos como o Novo Movimento Americano, ou para vários “sindicatos de mulheres” autônomos.

As feministas socialistas mais novas têm comandado uma campanha enérgica e razoavelmente efetiva para recrutar mulheres neutras. Em contraste, os grupos mais rígidos da velha esquerda rejeitaram amplamente a própria ideia de que lésbicas, separatistas e várias outras feministas sujas e inadequadas poderiam trabalhar com os nobres herdeiros de Marx, Trotsky (apesar dos trotskystas serem imprevisíveis), Stalin e Mao. Muitos rejeitam a ideia de um movimento autônomo de mulheres que se preocupe de algum modo com os assuntos das mulheres. Para eles, ele é cheio de mulheres “burguesas” (o pior dos epítetos marxistas!) preocupadas em “fazer suas próprias coisas” e “divide a classe trabalhadora”, o que é um pressuposto curioso de que a classe trabalhadora é mais estúpida do que qualquer outra. Alguns têm uma antipatia histérica às lésbicas: os grupos mais notórios são a Liga de Outubro e o Partido Comunista Revolucionário, mas eles não estão a sós. Nessa política, assim como em várias outras, a linha antilésbica segue aquelas dos países comunistas. O PCR, por exemplo, lançou um artigo de posicionamento no começo dos anos 1970 (nos seus dias pré-partido, quando era a velha e simples União Revolucionária) que anunciava que homossexuais estão “presos no atoleiro e no lamaçal da decadência burguesa”, e que a libertação homossexual é “contra a classe trabalhadora e contrarrevolucionária”. Nenhum dos grupos da velha esquerda aceita a ideia de que quaisquer mulheres fora do “proletariado” possam ser oprimidas. A classe trabalhadora, claro, é um conceito maravilhosamente flexível: nos debates atuais da esquerda, ela muda dos trabalhadores de ponto de produção (e ponto final) para um grupo enorme que engloba toda e qualquer pessoa que vende seu trabalho por salário, ou que depende de alguém que o venda. Isso é quase todas e todos nós. (Então, Papa Kari, se 90 porcento das pessoas dos Estados Unidos são a vanguarda, porque não ainda tivemos a revolução?)

As feministas socialistas mais novas têm tentado de todas as maneiras criativas manter um núcleo de pensamento marxista-leninista, atualizá-lo e enxertá-lo no feminismo radical moderno. Os resultados são algumas vezes peculiares. Em Julho de 1975, as mulheres do Novo Movimento Americano e vários grupos autônomos realizaram a primeira conferência nacional sobre feminismo socialista. Ela não foi divulgada pesadamente com antecedência, e todo mundo pareceu se surpreender que tantas mulheres (mais de seiscentas, e outras que a abandonaram) queriam passar o fim de semana de 4 de julho em Yellow Springs, Ohio.

Ao ler os discursos dados na conferência, assim como os comentários extensos escritos por outras mulheres que participaram,[4] não fica tão claro o que as organizadoras da conferência achavam que estavam oferecendo no nome do “feminismo socialista”. Os Princípios de União que foram traçados antes da conferência incluíam dois itens que sempre foram associados com o feminismo radical, e que de fato são tipicamente vistos como opostos a uma perspectiva socialista. O primeiro princípio afirmava: “Nós reconhecemos a necessidade e apoiamos a existência do movimento autônomo das mulheres através do processo revolucionário”. O segundo dizia: “Nós concordamos que toda opressão, seja baseada em raça, classe, sexo ou lesbianismo, está inter-relacionada e as lutas pela libertação da opressão devem ser simultâneas e cooperativas”. O terceiro princípio meramente observava que “o feminismo socialista é uma estratégia para a revolução”; e o quarto e último princípio pedia para manter discussões “no espírito de luta e união”.

Isto é, claro, um incrível bufê de princípios saborosos – um cardápio desenhado para atrair praticamente todo mundo. Mas quando feministas “socialistas” servem o movimento independente das mulheres como o prato principal, e quando elas dizem que a opressão de classe é apenas uma dentre várias opressões, não mais importante que as outras, então (como críticos marxistas dizem) não é mais socialismo.

Entretanto, feministas socialistas também não seguiram as implicações do feminismo radical totalmente. Se fizessem isso, elas aceitariam outro princípio: que estruturas não hierárquicas são essenciais para a prática feminista. Isso, é claro, é demais para qualquer socialista. Mas o que isso significa é que o feminismo radical é de longe mais compatível com um tipo de anarquismo do que com o socialismo. Esse tipo é o anarquismo social (também conhecido como anarquismo comunista), não as variedades individualistas ou anarcocapitalistas.

Isso não será novidade para as feministas que estão familiarizadas com os princípios anarquistas – mas muito poucas feministas estão. Isso é compreensível, já que o anarquismo guinou entre a má publicidade e nenhuma publicidade. Se feministas estivessem familiarizadas com o anarquismo, elas não estariam olhando muito vigorosamente para o socialismo como um meio de combater a opressão sexista. Feministas têm que ser céticas de qualquer teoria social que venha com um conjunto pronto de líderes e seguidores, não interessa o quão “democrática” esta estrutura centralizada supostamente é. Mulheres de todas as classes, raças e circunstâncias de vida estiveram na extremidade recebedora da dominação por tempo demais para querer trocar um conjunto de mestres por outro. Nós sabemos quem tem poder e (com algumas exceções isoladas) não somos nós.

Diversas feministas anarquistas contemporâneas apontaram as conexões entre o anarquismo social e o feminismo radical. Lynne Farrow disse que “o feminismo pratica o que o anarquismo prega”. Peggy Kornegger acredita que “feministas têm sido anarquistas inconscientes na teoria e na prática há anos”. E Marian Leighton afirma que “a diferenciação aprimoradora de feminista radical para anarcafeminista é em grande parte a de dar um passo em direção ao desenvolvimento teórico autoconsciente”.[5]

 

Nós construímos autonomia
O processo de síntese sempre crescente
Para cada criatura viva.
Nós espalhamos
Espontaneidade e criação
Nós aprendemos as alegrias da igualdade
Dos relacionamentos
Sem dominação
Entre irmãs
Nós destruímos a dominação
Em todas as suas formas.

 

Este canto apareceu no jornal feminista radical It Ain’t Me Babe[6], cuja manchete carregava a frase “acabe com todas as hierarquias”. Ele não foi rotulado como um jornal anarquista (ou feminista anarquista), mas as conexões são fortes. Ele exemplificou muito do caráter da libertação das mulheres nos primeiros anos do renascimento do movimento. E é esse espírito que vai ser perdido se o híbrido feminista socialista criar raízes; se a adoração a deusas ou a nação lesbiana convencerem as mulheres a construir novas formas de dominação-submissão.

Feminismo radical e feminismo anarquista

Todas as feministas radicais e todas as feministas anarquistas estão preocupadas com um conjunto de assuntos em comum: controle sobre o próprio corpo; alternativas à família nuclear e à heterossexualidade; novos métodos de cuidado infantil que libertem pais, mães e crianças; autodeterminação econômica; acabar com a estereotipagem sexual na educação, na mídia e no local de trabalho; a abolição de leis repressoras; um fim à autoridade, à propriedade e ao controle de homens sobre mulheres; fornecer às mulheres os meios para o desenvolvimento de habilidades e de autoatitudes positivas; um fim aos relacionamentos emocionais opressores; e o que Situacionistas chamavam de “a reinvenção da vida cotidiana”.

Há então, muitas questões nas quais feministas radicais e feministas anarquistas concordam. Mas feministas anarquistas estão preocupadas com algo mais. Por serem anarquistas, elas trabalham para acabar com todas as relações de poder, todas as situações em que as pessoas podem oprimir umas às outras. Diferentemente de algumas feministas radicais que não são anarquistas, elas não acreditam que o poder nas mãos das mulheres poderia possivelmente resultar em um sociedade não coerciva. E diferentemente da maioria das feministas socialistas, elas não acreditam que algo de bom possa vir de um movimento de massa com uma elite de liderança. Resumindo, nem um Estado trabalhador nem um matriarcado irá acabar com a opressão de todo mundo. O objetivo, então, não é “tomar” o poder, como os socialistas gostam tanto de nos encorajar, mas abolir o poder.

De forma contrária à crença popular, todas e todos os anarquistas sociais são socialistas. Ou seja, querem tirar a riqueza das mãos de poucos e redistribuí-la entre todos os membros da comunidade. E elas e eles acreditam que as pessoas precisam cooperar entre si como uma comunidade, ao invés de viverem como indivíduos isolados. Para anarquistas, entretanto, os assuntos centrais são sempre o poder e a hierarquia social. Se um Estado – mesmo um Estado representante da classe trabalhadora – continua, ele irá restabelecer as formas de dominação, e algumas pessoas não serão mais livres. As pessoas não são livres somente porque estão sobrevivendo, ou mesmo por estarem economicamente confortáveis. Elas são livres somente quando têm poder sobre suas próprias vidas. As mulheres, ainda mais que os homens, possuem muito pouco poder sobre suas próprias vidas. Ganhar tal autonomia, e insistir que todo mundo a tenha, é o maior objetivo das feministas anarquistas.

 

Poder para ninguém, e para todo mundo: a cada pessoa o poder sobre sua própria vida, e não sobre outrem.[7]

 

Na prática

Essa é a teoria. E quanto à prática? De novo, o feminismo radical e o feminismo anarquista possuem mais em comum do que cada um possui com o feminismo socialista.[8] Ambos trabalham para construir instituições alternativas, e ambos levam as políticas do pessoal muito a sério. Feministas socialistas são menos inclinadas a pensar que alguma dessas é particularmente vital à prática revolucionária.

Desenvolver formas alternativas de organização significa construir clínicas de autoajuda, ao invés de lutar para colocar uma radical no conselho diretor de um hospital; significa grupos de vídeo e jornais de mulheres, ao invés de televisão e jornais comerciais; coletivos vivos, ao invés de famílias nucleares isoladas; centros de ajuda a vítimas de estupro; cooperativas de comida; creches controladas por mães e pais; escolas livres; cooperativas de impressão; grupos de rádio alternativa; e assim por diante.

No entanto, é pouco eficiente construir instituições alternativas se suas estruturas imitarem os modelos capitalistas e hierárquicos com os quais temos tanta familiaridade. Muitas feministas radicais reconheceram isso cedo: é por isso que elas trabalharam para rearranjar a maneira com que as mulheres percebiam o mundo e a si mesmas (através do grupo de conscientização), e por isso que elas trabalharam para rearranjar as formas de relacionamentos de trabalho e interações interpessoais (através dos grupos pequenos e sem líderes onde as tarefas são rotatórias e as habilidades e o conhecimento são compartilhados). Elas estavam tentando fazer isso em uma sociedade hierárquica que não fornece qualquer modelo, exceto os modelos de desigualdade. Certamente, um conhecimento da teoria e dos modelos de organização anarquistas teria ajudado. Equipadas com esse conhecimento, as feministas radicais poderiam ter evitado alguns dos erros que cometeram – e poderiam ter se tornado mais aptas para superar algumas das dificuldades que encontraram ao tentar transformar simultaneamente a si mesmas e à sociedade.

Tome, por exemplo, o ainda atual debate sobre “mulheres fortes” e o assunto proximamente relacionado da liderança. A posição feminista radical pode ser resumida desta forma:

1. As mulheres foram controladas porque estão isoladas umas das outras e estão pareadas com os homens em relacionamentos de dominação e submissão.
2. Os homens não irão libertar as mulheres; as mulheres devem se libertar. Isso não pode acontecer se cada mulher tentar se libertar sozinha. Logo, as mulheres devem trabalhar juntas em um modelo de apoio mútuo.
3. “A irmandade é poderosa”, mas as mulheres não podem ser irmãs se elas recapitularem padrões masculinos de dominação e submissão.
4. Novas formas organizacionais devem ser desenvolvidas. A forma primária é o grupo pequeno e sem líderes; os mais importantes comportamentos são o igualitarismo, o suporte mútuo, e o compartilhamento de habilidades e de conhecimento.

Se muitas mulheres aceitaram isso, muitas mais não aceitaram. Algumas se opuseram desde o começo; outras viram em primeira mão que isso era difícil de pôr em prática, e, lamentavelmente, concluíram que um idealismo tão belo nunca funcionaria.

Suporte ideológico para aquelas que rejeitaram os princípios propostos pelas “anarquistas inconscientes” foi fornecido em dois documentos que rapidamente circularam entre os jornais e as organizações de libertação das mulheres. O primeiro foi o discurso de Anselma dell’Olio ao segundo Congress to Unite Women (“Congresso para a União das Mulheres”), que aconteceu em Maio de 1970 na cidade de Nova Iorque. O discurso, intitulado Divisiviness and Self-Destruction in the Women’s Movement: A Letter of Resignation (“Divisionismo e Auto-Destruição no Movimento das Mulheres: Uma Carta de Resignação”), exibiu as razões de dell’Olio para largar o movimento feminista. O segundo documento foi The Tyrany of Structurelessness (“A Tirania da Falta de Estrutura”), de Joreen, o qual apareceu inicialmente em 1972 no jornal The Second Wave. Ambos levantavam questões de prática organizacional e pessoal que eram, e ainda são, tremendamente importantes ao movimento das mulheres:

 

Eu vim para anunciar o meu canto do cisne ao movimento das mulheres… Eu fui destruída… Eu aprendi há três anos e meio atrás que as mulheres sempre estiveram divididas entre si, que elas eram autodestrutivas e estavam repletas de raiva impotente. Nunca sonhei que veria o dia em que essa raiva, mascarada como um radicalismo pseudoigualitário sob o pôster ‘pró-mulher’, se transformaria em um assustadoramente depravado fascismo anti-intelectual esquerdista, e seria usado dentro do movimento para atacar irmãs excluídas com toda a sutileza e a justiça de uma corte de cangurus da Ku Klux Klan. Eu estou me referindo, é claro, ao ataque pessoal, declarado e odioso, ao qual as mulheres do movimento que dolorosamente conseguiram qualquer grau de conquista estiveram sujeitas. Se você tem sucesso você é imediatamente rotulada como uma aventureira oportunista, uma mercenária implacável, querendo conseguir fama e fortuna sobre o cadáver das irmãs altruístas que enterraram suas habilidades e sacrificaram suas ambições para a glória do feminismo… Se você tem o azar de ser extrovertida e articulada, você é acusada de ser sedenta por poder, elitista, racista e, finalmente, o pior epíteto de todos: uma identificadora de machos.[9]

 

Quando Anselma dell’Olio deu esse raivoso adeus ao movimento, ela fez duas coisas: para algumas mulheres, levantou a questão de como as mulheres podem terminar com as desiguais relações de poder entre elas mesmas sem destruir umas às outras. Para outras, ele fez o oposto – ela proporcionou uma justificativa fácil para todas as mulheres que estavam dominando outras mulheres de uma maneira nada sororal. Qualquer uma envolvida na libertação das mulheres naquele momento sabe que o discurso de dell’Olio era distorcido por algumas mulheres exatamente desta forma: chame-se de assertiva, ou de forte, ou de talentosa, e você consegue rerrotular uma grande quantidade de comportamento feio, insensível e opressor. As mulheres que se apresentavam como heroínas trágicas destruídas por suas “irmãs” invejosas ou enganadas (e, é claro, bem menos talentosas) poderiam contar com uma resposta simpática da parte de outras mulheres.

Da mesma forma, mulheres envolvidas no movimento naquele momento sabem que o tipo de coisas sobre as quais dell’Olio falou realmente aconteciam, e elas não deveriam ter acontecido. Um conhecimento de teoria anarquista não é o suficiente, é claro, para prevenir ataques indiscriminados a mulheres. Mas na luta para aprender novos meios de se relacionar e de trabalhar juntas, tal conhecimento poderia – apenas poderia – ter prevenido alguns desses erros destrutivos.

Ironicamente, esses erros foram motivados pela aversão do feminismo radical às formas convencionais de poder, e pelos relacionamentos interpessoais desumanos que resultam de um conjunto de pessoas tendo poder sobre outras. Quando feministas radicais e feministas anarquistas falam em abolir o poder, elas querem dizer se livrar de todas as instituições, de todas as formas de socialização, de todas as maneiras em que as pessoas coagem umas às outras – e consentem em ser coagidas.

Um grande problema surgiu ao definir a natureza da coerção no movimento das mulheres. A hostilidade à mulher “forte” surgiu porque ela era alguém que, pelo menos potencialmente, poderia atuar na coerção das mulheres que eram menos articuladas, menos autoconfiantes, menos assertivas do que ela. A coerção normalmente é muito mais sutil que a força física ou a sanção econômica. Uma pessoa pode coagir outra sem tirar seu emprego, ou sem bater nela, ou sem jogá-la na cadeia.

As mulheres fortes começaram com uma tremenda vantagem. Frequentemente, elas sabiam mais. Certamente, há muito tempo elas superaram a socialização incapacitante que acentuou o comportamento passivo, tímido, dócil e conformista – o comportamento que ensinou às mulheres a sorrir quando não estavam se divertindo, a sussurrar quando queriam gritar, a abaixar seus olhos quando alguém as encarasse agressivamente. Mulheres fortes não tinham pavor de falar em público; elas não tinham medo de assumir tarefas “masculinas”, ou de tentar algo novo. Ou assim parecia.

Ponha uma mulher “forte” no mesmo grupo pequeno com uma “fraca” e ela se torna um problema: como ela não domina? Como ela compartilha com sua irmã suas habilidades e sua confiança duramente conquistadas? Por outro lado – como a mulher “fraca” aprende a agir em benefício próprio? Como alguém pode até mesmo conceber a ajuda “mútua” em tal situação unilateral? A “irmandade” quando o membro “fraco” não se sente igual ao “forte”?

Essas são questões complicadas, sem respostas simples. Talvez o mais perto que possamos chegar seja com o lema anarquista “uma pessoa forte não precisa de líderes”. Aquelas de nós que aprenderam a sobreviver dominando outras, assim como aquelas de nós que aprenderam a sobreviver aceitando a dominação, precisam se ressocializar para serem fortes sem jogos de dominação-submissão, para controlar o que acontece a nós sem controlar outrem. Isso não pode ser feito elegendo as pessoas certas a um cargo político ou seguindo a linha partidária correta; nem pode ser feito sentando e refletindo sobre nossos pecados. Nós nos reconstruímos e reconstruímos nosso mundo através da atividade, através de sucessos parciais, e de falhas, e de mais sucessos parciais. E o tempo todo, nos tornamos mais fortes e mais autoconfiantes.

Se Anselma dell’Olio criticou a prática pessoal das feministas radicais, Joreen levantou algumas questões pesadas sobre a estrutura organizacional. “A Tirania da Falta de Estrutura”[10] apontou que não existe algo como um grupo “sem estrutura”, e as pessoas que alegam que há estão enganando a si mesmas. Todos os grupos possuem uma estrutura; a diferença é se a estrutura está explícita ou não. Se ela está implícita, elites escondidas com certeza irão existir e controlar o grupo – e todo mundo, de líderes a lideradas, irá negar ou ser confundido pelo controle que existe. Essa é a “tirania” da falta de estrutura. Para superar isso, os grupos precisam preparar estruturas abertas e explícitas que sejam visíveis aos membros.

Qualquer feminista anarquista, eu acredito, concordaria com sua análise – até esse ponto, e não além, pois o que Joreen também disse foi que o chamado “grupo sem líder e sem estrutura” era incapaz de ir além da fala para a ação. Não somente sua falta de estrutura aberta, mas também seu tamanho pequeno e sua ênfase em conscientização (conversa) estavam fadados a torná-lo inefetivo.

Joreen não disse que os grupos de mulheres deveriam ser estruturados hierarquicamente. De fato, ela propunha uma liderança que fosse “difusa, flexível, aberta e temporária”; organizações que construíssem responsabilidade, difusão de poder entre o máximo número de pessoas, rotação de tarefas, compartilhamento de habilidades e propagação de informação e de recursos. Todos os bons princípios anarquistas sociais de organização! Mas sua depreciação da conscientização e sua preferência por grandes organizações regionais e nacionais eram estritamente parte da maneira antiga de se fazer as coisas, e aceitava implicitamente a continuação das estruturas hierárquicas.

Grandes grupos são organizados de maneira que o poder e a tomada de decisões sejam delegadas a poucos indivíduos – a menos, é claro, se estamos falando de uma rede de pequenos coletivos horizontalmente coordenada, o que ela não mencionou. Como um grupo como a NOW, com seus sessenta mil membros em 1975, rotaciona tarefas, compartilha habilidades, e se assegura de que todas as informações e os recursos estejam disponíveis para todo mundo? Ele não pode, é claro. Tais grupos têm presidente, e um conselho diretor, e um escritório nacional, e membros – alguns dos quais estão em filiais locais, e alguns dos quais são membros isolados. Poucos desses grupos têm uma democracia bastante direta, e poucos ensinam aos seus membros novas maneiras de trabalhar e de se relacionar uns com os outros.

O efeito infeliz da “Tirania da Falta de Estrutura” foi que ele juntou a grande organização, a estrutura formal e a ação direta bem sucedida de uma forma que parecia fazer sentido para várias pessoas. Muitas mulheres sentiram que, para lutar contra a opressão da sociedade, uma grande organização era essencial, e quanto maior, melhor. A imagem é força colocada contra força: você não mata um elefante com uma arma de ar, e você não acaba com o Estado patriarcal com o grupo pequeno. Para as mulheres que aceitam o argumento de que um tamanho maior está ligado à maior eficácia, as opções organizacionais parecem limitadas aos grandes grupos liberais como a NOW ou às organizações socialistas, que são organizações de massa.

Assim como várias coisas que parecem fazer sentido, a lógica é falha. A “opressão social” é uma reificação, uma entidade berrante, paralisante e inventada que é grande principalmente no sentido de que as mesmas opressões acontecem a muitas e muitos de nós. Mas as opressões, não importa quão pervasivas, quão previsíveis, quase sempre são feitas a nós por alguém – mesmo se aquela pessoa está agindo como agente do Estado, ou membro da raça, do gênero ou da classe dominante. Os ataques policiais massivos sobre nossas forças reunidas são poucos; mesmo o policial ou o chefe ou o marido que está conduzindo seu papel sexista ou autoritário destinado se intersecciona conosco em um dado momento de nossas vidas diárias. A opressão institucionalizada realmente existe, em uma grande escala, mas ela raramente precisa ser atacada (na verdade, ela raramente pode ser atacada) por um grande grupo. Táticas de guerrilha por um grupo pequeno – ocasionalmente, mesmo por um único indivíduo – vão se sair muito bem em retaliação.

Outro efeito infeliz da mentalidade da “Tirania da Falta de Estrutura” (se não diretamente do artigo) foi que ela alimentou os estereótipos de anarquistas. (É claro, as pessoas não costumam engolir algo a menos que estejam com fome.) Anarquistas sociais não se opõem à estrutura: não são nem mesmo contra a liderança, desde que ela não acarrete qualquer recompensa ou privilégio, e que seja temporária e específica para uma tarefa em particular. Entretanto, anarquistas, que querem abolir uma estrutura hierárquica, são quase sempre estereotipadas como não querendo estrutura nenhuma. Infelizmente, a foto de um amontoado de mulheres anarquistas caóticas e desorganizadas, vagando sem direção, ficou popular. Por exemplo, em 1976 o periódico Quest reimprimiu a transcrição de uma entrevista que Charlotte Bunch e Beverly Fisher haviam dado à Feminist Radio Network em 1972. A coisa mais interessante sobre a entrevista foi que as editoras da Quest acharam que os assuntos eram ainda muito atuais em 1976.[11] (“Nós vemos a mesma destruição de líderes e glorificação da falta de estrutura que existiam há cinco anos atrás.” [p. 13])

Mas o que Bunch tinha a dizer naquela hora também era extremamente interessante: de acordo com ela, a ênfase em resolver problemas de estrutura e liderança era “um desejo anarquista muito forte. Era um bom desejo, mas não realista” (p. 4). Anarquistas, que já se acostumaram a serem chamadas de “irrealistas”, notaram que a irrealidade de tudo aparentemente estava nos problemas que o movimento das mulheres estava tendo em se organizar – problemas de liderança escondida, de terem “líderes” impostas pela mídia, de dificuldade em alcançar mulheres interessadas mas não comprometidas, da sobrerrepresentação de mulheres da classe média com muito tempo em suas mãos, do amorfismo do movimento, da escassez de grupos-tarefa específicos aos quais as mulheres pudessem se juntar, da hostilidade perante mulheres que tentavam mostrar liderança ou iniciativa. Uma acusação pesada!

No entanto, esses problemas reais não eram causados pelo anarquismo, nem serão curados por doses de vanguardismo ou reformismo. E ao rotular essas dificuldades organizacionais como “anarquistas”, as feministas ignoram uma rica tradição anarquista, enquanto ao mesmo tempo promovem soluções que são – apesar de elas aparentemente não saberem que são – anarquistas. Bunch e Fisher propuseram um modelo de liderança no qual todo mundo participa da tomada de decisões; e a liderança é específica para uma situação particular e é limitada temporalmente. Fisher criticou a NOW pela “liderança hierárquica que não é responsável para a vasta filiação” (p. 9), e Bunch declarou que “liderança é as pessoas tomando a iniciativa, levando as coisas a cabo, tendo as ideias e a imaginação para iniciar algo e exibindo habilidades específicas em áreas diferentes” (p. 8). Como elas sugerem que seja prevenido o silenciamento dessas mulheres sob falsas noções de igualitarismo? “A única maneira de as mulheres pararem de jogar para baixo as mulheres que são fortes é elas mesmas serem fortes” (p. 12). Ou, como eu disse antes, uma pessoa forte não precisa de líderes. Isso mesmo!

Situacionismo e feminismo anarquista

 

Transformar o mundo e mudar a estrutura da vida são uma única coisa.[12]

O pessoal é político.[13]

 

Anarquistas se acostumaram a ouvir que lhes falta uma teoria que ajudaria a construir uma nova sociedade. No máximo, dizem seus detratores condescendentemente, o anarquismo nos diz o que não fazer. Não permita burocracia ou autoridade hierárquica; não deixe um partido de vanguarda tomar decisões; não mande em mim. Não mande em ninguém. De acordo com essa perspectiva, o anarquismo nem mesmo é uma teoria, ele é um conjunto de práticas de precaução, as vozes da consciência libertária – sempre idealista, às vezes um pouco truculenta, ocasionalmente anacrônica, mas um lembrete necessário.

Há mais que um cerne de verdade a essa objeção. Não obstante, há variedades do pensamento anarquista que podem fornecer uma moldura teórica para a análise do mundo e ação para mudá-lo. Para feministas radicais que querem dar aquele “passo em direção ao desenvolvimento teórico autoconsciente”[14], talvez o maior potencial esteja no situacionismo.

O valor do situacionismo para uma análise anarquista feminista é que ele combina uma percepção socialista da primazia da opressão capitalista com uma ênfase anarquista sobre a transformação da totalidade da vida pública e privada. A questão sobre a opressão capitalista é importante: muito frequentemente, anarquistas parecem não se atentar ao fato de que este sistema econômico explora a maioria das pessoas. Mas, muito frequentemente, os socialistas – especialmente os marxistas – são cegos para o fato de que as pessoas são oprimidas em todos os aspectos da vida: no trabalho, no que passa por lazer, na cultura, nas relações pessoais – em toda ela. E somente anarquistas insistem que as pessoas devem transformar as condições de suas vidas por si mesmas – isso não pode ser feito para elas. Não pelo partido, não pelo sindicato, não pelos “organizadores”, não por ninguém mais.

Dois conceitos situacionistas básicos são “mercadoria” e “espetáculo”. O capitalismo transformou todas as relações sociais em relações de mercadoria: o mercado comanda tudo. As pessoas não são apenas produtoras e consumidoras no estreito sentido econômico, mas a própria estrutura de suas vidas cotidianas é baseada em relações de mercado. A sociedade “é consumida como um todo – o conjunto de relações e estruturas sociais é o produto central da economia de mercado”.[15] Isso inevitavelmente alienou as pessoas de suas vidas, não somente de seu trabalho; consumir relações sociais faz de uma pessoa uma espectadora passiva de sua própria vida. O espetáculo, então, é a cultura que surge da economia de mercado – o palco é preparado, a ação se desenrola, nós aplaudimos enquanto pensamos que estamos felizes, nós bocejamos quando achamos que estamos nos entediando, mas não podemos deixar a apresentação, porque não há nenhum mundo fora do teatro para irmos.

Em tempos recentes, entretanto, o palco da sociedade começou a ruir, e então existe a possibilidade de construir outro mundo fora do teatro – desta vez, um mundo real, um mundo em que cada uma e cada um de nós participe diretamente como sujeito, não objeto. A frase situacionista para esta possibilidade é “a reinvenção da vida cotidiana”.

Como a vida cotidiana deve ser reinvestida? Criando situações que rompem o que parece ser a ordem natural das coisas – situações que retirem as pessoas das formas costumeiras de se pensar e de se comportar. Somente então elas estarão aptas a atuar, a destruir o espetáculo manufaturado e a economia de mercado – ou seja, o capitalismo em todas as suas formas. Somente então elas estarão aptas a criarem vidas livres e não alienadas. A congruência desta teoria social anarquista e ativista com a teoria feminista radical é notável. Os conceitos de mercadoria e de espetáculo são especialmente aplicáveis às vidas das mulheres. De fato, muitas feministas radicais os descreveram em detalhes, sem colocá-los dentro da moldura situacionista.[16] Fazer isso amplia a análise ao mostrar a situação das mulheres como uma parte orgânica da sociedade como um todo, mas, ao mesmo tempo, sem fazer jogos reducionistas socialistas.

A opressão das mulheres é parte da opressão sobre todas as pessoas por uma economia capitalista, mas não é menos que a opressão de outras. Nem – a partir de uma perspectiva situacionista – você tem que ser uma variedade particular de mulher para ser oprimida; você não tem que ser parte do proletariado, tanto literalmente, como uma trabalhadora industrial, ou metaforicamente, como alguém que não é independentemente rica. Você não tem que esperar esbaforidamente por manifestos feministas socialistas para te dizer que você se qualifica – como uma dona de casa (reproduzindo a próxima geração de trabalhadores), como uma trabalhadora de escritório, como uma estudante ou uma profissional de nível médio empregada pelo Estado (e, portanto, como uma parte da “nova classe trabalhadora”). Você não precisa fazer parte do terceiro mundo, ou ser lésbica, ou ser idosa, ou receber pensão do Estado. Todas essas mulheres são objetos na economia de mercado; todas são expectadoras passivas do espetáculo. Obviamente, as mulheres em algumas situações estão bem piores do que outrem. Mas, ao mesmo tempo, nenhuma está livre em todas as áreas de suas vidas.

As mulheres e a economia de mercado

As mulheres têm um relacionamento duplo com a economia de mercado – elas são tanto consumidoras quanto consumidas. Como donas de casa, são consumidoras de produtos domésticos, obtidos com dinheiro que não é seu, porque não foi “recebido” por elas. Isso pode lhes dar uma certa quantidade de poder de compra, mas muito pouco poder sobre qualquer aspecto de suas vidas. Como jovens e solteiras heterossexuais, as mulheres são consumidoras de bens feitos para fazê-las trazer um alto preço para o mercado de casamentos. Como qualquer outra coisa – lésbicas, ou idosas solteiras, ou mulheres autossuficientes com “carreiras”, o relacionamento das mulheres com o mercado como consumidoras não é tão facilmente definido. Espera-se que elas comprem (e quanto mais prósperas elas são, mais se espera que comprem), mas para algumas categorias de mulheres, comprar não é primariamente definido como o preenchimento de algum aspecto do papel de uma mulher.

Então o que há de novo? Não é a ideia da mulher como consumidora passiva, manipulada pela mídia, tratada com condescendência por homens astutos da Avenida Madison, um clichê antigo do movimento? Bem, sim – e não. Uma análise situacionista liga o consumo de bens econômicos ao consumo de bens ideológicos, e então nos diz para criar situações (ações de guerrilha em vários níveis) que irão quebrar o padrão de aceitação social do mundo como ele é. Sem culpabilização; sem criticar as mulheres que “compraram” a perspectiva de consumidora. Pois elas de fato a compraram: ela lhes foi vendida como um meio de sobrevivência desde os primeiros momentos de suas vidas. Compre isto: vai fazer você bonita e amável. Compre isto: vai deixar sua família com boa saúde. Se sente deprimida? Passe uma tarde no salão de beleza ou compre um novo vestido.

A culpa leva à inércia. Somente a ação, reinventar o cotidiano e fazer dele outra coisa, irá mudar as relações sociais.

 

O Presente

Pensando que ela era o presente
eles começaram a empacotá-la cedo.
Eles depilaram seu sorriso
eles abaixaram seus olhos
eles regularam suas orelhas ao telefone
eles enrolaram seu cabelo
eles alinharam seus dentes
eles a ensinaram a enterrar seu osso
eles despejaram mel em sua garganta
eles a fizeram falar sim sim e sim
eles sentaram em seus polegares
“Essa caixa tem meu nome nela”,
disse o homem. “Ela é para mim.”
E eles não ficaram surpresos.
Enquanto eles mandavam beijos e acenavam
ele a levou pra casa. Ele a colocou em uma mesa
onde seus amigos pudessem examiná-la
dizendo “dance”, dizendo “mais rápido”.
Ele mergulhou em seu túnel
ele queimou seu nome mais profundamente.
Depois ele a colocou em uma plataforma
sob as luzes de Klieg
dizendo “empurre”, dizendo “mais forte”
dizendo “exatamente o que eu queria”
“você me deu um filho”.

Carole Oles[17]

 

As mulheres não são somente consumidoras na economia de mercado; elas são consumidas como mercadorias. É sobre isso o poema de Oles, e é isso que Tax chamou de “esquizofrenia feminina”. Tax constrói um monólogo interior para a dona de casa como mercadoria: “Eu não sou nada quando estou sozinha. A sós, eu não sou nada. Eu só sei que existo porque eu sou necessária para alguém que é real, meu marido, e por meus filhos”.[18]

Quando feministas descrevem a socialização no papel sexual feminino, quando elas apontam as características que são ensinadas às crianças do sexo feminino (dependência emocional, infantilidade, timidez, preocupação em ser bela, docilidade, passividade, e assim por diante), elas estão falando sobre a cuidadosa produção de uma mercadoria – apesar de ela não ser normalmente chamada disso. Quando elas descrevem a opressão da objetificação sexual, ou da vida em uma família nuclear, ou de ser uma supermãe, ou de trabalhar nos empregos de baixo nível e mal pagos que a maioria das mulheres encontra na força de trabalho assalariado, elas também estão descrevendo as mulheres como mercadoria. As mulheres são consumidas por homens que as tratam como objetos sexuais; elas são consumidas por suas crianças (as quais ela produziu!) quando elas compram o papel de supermãe; elas são consumidas por maridos autoritários que esperam que elas sejam servas submissas; e elas são consumidas por chefes que as colocam dentro e fora da força de trabalho e que extraem um máximo de trabalho por um mínimo de pagamento. Elas são consumidas por pesquisadores médicos que querem testar contraceptivos novos e não seguros nelas. Elas são consumidas por homens que compram seus corpos na rua. Elas são consumidas pela igreja e pelo Estado, que esperam que elas produzam a nova geração para a glória de deus e do país; elas são consumidas por organizações políticas e sociais que esperam que elas “voluntariem” seu tempo e sua energia. Elas têm pouco senso de si, porque este foi vendido a outros.

As mulheres e o espetáculo

É difícil consumir pessoas que arranjam briga, que resistem à canibalização de seus corpos, de suas mentes, de suas vidas cotidianas. Algumas pessoas conseguem resistir, mas a maioria não resiste eficientemente, porque não pode. É difícil localizar nosso atormentador, porque ele é muito persuasivo, e muito familiar. Nós o conhecemos durante todas nossas vidas. Ele é a nossa cultura.

Situacionistas caracterizam nossa cultura como um espetáculo. O espetáculo trata todas e todos nós como espectadoras e espectadores do que nos dizem ser nossas vidas. E a cultura como espetáculo cobre tudo: nós nascemos nela, nos socializamos por ela, vamos para a escola nela, trabalhamos e relaxamos e nos relacionamos às outras pessoas nela. Mesmo quando nos rebelamos contra ela, a rebelião é frequentemente definida pelo espetáculo. Alguém se importaria de estimar o número de homens adolescentes sensíveis e alienados que há uma geração atrás modelavam seu comportamento em James Dean de Rebelde sem Causa? Eu estou falando sobre um filme, cujos produtores capitalistas e cuja estrela fizeram uma grande quantidade de dinheiro desse espetáculo.

Atos de rebelião, então, tendem a ser atos de oposição ao espetáculo, mas de vez em quando são tão diferentes que transcendem o espetáculo. As mulheres têm um conjunto de comportamentos que mostram dessatisfação sendo o oposto do que é esperado delas. Ao mesmo tempo, esses atos são clichês de rebelião, e desse modo são quase válvulas de escape receitadas que não alteram o teatro de nossas vidas. O que uma mulher rebelde deve fazer? Nós todas podemos nomear os comportamentos – eles aparecem em todos os jornais, no horário nobre da televisão, na lista de livros mais vendidos, em revistas populares – e, é claro, na vida cotidiana. Em uma estrutura que valoriza o trabalho doméstico perfeccionista, ela pode ser uma desleixada; em uma subcultura que valoriza grandes famílias, ela pode se recusar a ter filhas e filhos. Outras insurgências previsíveis? Ela pode desafiar o padrão duplo sexual para mulheres casadas ao ter um caso (ou vários); ela pode beber; ou usar o que é chamado de “linguagem de vestiário”; ou ela pode ter um ataque nervoso; ou – se ela for adolescente – ela pode “se comportar mal” (uma expressão reveladora) ao fugir de casa e fazer sexo com um monte de homens.

Qualquer uma dessas coisas pode tornar a vida de uma mulher individual mais tolerável (frequentemente, elas a tornam menos); e todas elas têm a garantia de fazer os conservadores resmungar que a sociedade está ruindo. Mas esses tipos de insurreições roteirizadas não a fizeram ruir ainda, e, por si mesmas, provavelmente não farão. Algo menor que um ataque direto a todas as condições de nossas vidas não é o suficiente.

Quando as mulheres falam sobre mudar a destrutiva socialização do papel sexual das mulheres, elas escolhem uma de três possíveis soluções: (a) as meninas deveriam ser socializadas mais ou menos como os meninos para serem independentes, competitivas, agressivas, e assim por diante – resumindo, é um mundo de homens, então uma mulher que quer se encaixar nele tem que ser “um dos meninos”; (b) nós deveríamos glorificar o papel feminino, e perceber que o que nós chamamos de fraqueza na verdade é força – nós devemos nos orgulhar de sermos maternais, criadoras, sensíveis, emocionais, e assim por diante; (c) a única pessoa saudável é uma pessoa andrógina: nós devemos erradicar a divisão artificial da humanidade em “masculino” e “feminino”, e ajudar ambos os sexos a se tornarem uma mistura das melhores características de cada.

Dentro desses três modelos, soluções pessoais para o problema da opressão sexista cobrem um grande alcance: fique solteira; viva comunalmente (com homens e mulheres, ou somente com mulheres). Não tenha filhos ou filhas; não tenha filhos; tenha qualquer tipo de criança que você quiser, mas consiga uma creche controlada por mães e trabalhadoras. Arranje um emprego; arranje um emprego melhor; lute pela ação afirmativa. Seja uma consumidora informada; registre um processo; aprenda caratê; faça um treinamento de assertividade. Desenvolva a lésbica dentro de você. Desenvolva sua identidade proletária. Todas essas coisas fazem sentido em situações particulares, para mulheres em particular. Mas todas elas são soluções parciais para problemas muito mais amplos, e nenhuma delas necessariamente requer que se veja o mundo de maneira qualitativamente diferente.

Então, nós passamos das solução particulares para soluções mais gerais. Destrua o capitalismo. Acabe com o patriarcado. Esmague o heterossexismo. Todas são tarefas essenciais na construção de um mundo novo e verdadeiramente humano. Marxistas, outros socialistas, anarquistas sociais, feministas – todas e todos concordariam. Mas o que socialistas, e mesmo algumas feministas, deixam de fora é: nós devemos esmagar todas as formas de dominação. Isso não é somente um lema, e é a tarefa mais difícil de todas. Isso significa que temos que enxergar através do espetáculo, destruir os palcos, saber que há outras formas de fazer as coisas. Significa que temos que fazer mais do que reagir em rebeliões programadas – nós precisamos agir. E nossas ações serão realizadas coletivamente, enquanto cada pessoa age autonomamente. Isso parece contraditório? Não é – mas será muito difícil de se fazer. O indivíduo não pode mudar muita coisa; por esta razão, devemos trabalhar juntas. Mas esse trabalho deve ser sem líderes da forma como as conhecemos, e sem delegar nenhum controle sobre o que fazemos e sobre o que queremos construir.

As socialistas podem fazer isto? Ou as matriarcas? Ou as espiritualistas? Você sabe a resposta para isso. Trabalhe com elas se isso faz sentido pra você, mas desista quando não obter resultado. Não conceda nada a elas, ou a qualquer pessoa.

 

O passado conduz a nós se nós o forçarmos.
De outra forma ele nos contém
em seu asilo sem portões.
Nós fazemos a história ou ela
nos faz.[19]

 

Notas

[1]Barbara Ehrenreich, “What is Socialist Feminism?”, Win Magazine, 3 de junho de 1976, p. 4.
[2]O melhor desses argumentos que já encontrei são “Socialist Feminism: A Strategy for the Women’s Movement”, por Hyde Park Chapter, Chicago Women’s Liberation Union, 1972; e Charlotte Bunch, “The Reform Tool Kit”, Quest, v. 1, nº 1, verão de 1974, pp. 37-51.
[3]Relatos por Polly Anna, Kana Trueblood, C. Corday e S. Tufts, The Fifth Estate, maio de 1976, pp. 13-16. A “revolução” falhou: FEN e seu clube fecharam.
[4]As pessoas que estão interessadas em ler relatos da conferência irão encontrá-las em quase todo jornal feminista ou socialista que apareceram mais ou menos um mês depois de 4 de julho. Discursos por Barbara Ehrenreich, Michelle Russell e pelo Berkeley-Oakland Women’s Union estão reimpressos em Socialist Revolution, nº 26, outubro-dezembro de 1975; e o discurso de Charlotte Bunch, “Not for Lesbians Only”, aparece em Quest, v. 2, nº 2, outono de 1975. Um documentário de áudio com 30 minutos está disponível do Great Atlantic Radio Conspiracy, Avenida Maryland 2743, Baltimore, Maryland 21218.
[5]Farrow, “Feminism as Anarchism”, Aurora, nº 4, 1974, p. 9; Kornegger, “Anarchism: The Feminist Connection”, Second Wave, v. 4, nº 1, primavera de 1975, p. 31; Leighton, “Anarcho-Feminism and Louise Michel”, Black Rose, nº 1, abril de 1974, p. 14.
[6]1º de dezembro de 1970, p.11.
[7]“Lilith’s Manifesto”, de Women’s Majority Union of Seattle, 1969. Reimpresso em Robin Morgan (ed.), Sisterhood is Powerful. N.Y.: Random House, 1970, p. 529.
[8]A melhor e mais completa descrição dos paralelos entre o feminismo radical e o feminismo anarquista é encontrada em Kornegger, op cit.
[9]O discurso está atualmente disponível pelo KNOW, Inc.
[10]The Second Wave, v. 2, nº 1, 1972.
[11]“What Future for Leadership?”, Quest, v. 2, nº 4, primavera de 1976, pp. 2-13.
[12]Strasbourg Situationists, Once the Universities Were Respected, 1968, p. 38.
[13]Carol Hanisch, “The Personal Is Political”, Notes from the Second Year. N.Y.: Radical Feminism, 1970, pp. 76-78.
[14]Leighton, op. cit.
[15]Point-Blank!, “The Changing of the Guard”, em Point-Blank, outubro de 1972, p. 16.
[16]Para uma das mais iluminadoras dessas análises antigas, ver Meredith Tax, Woman and Her Mind: The Story of Everyday Life, Boston: Bread and Roses Publication, 1970.
[17]Carole Oles, “The Gift”, em 13th Moon, v. 2, nº 1, 1974, p. 39.
[18]Tax, op. cit., p. 13.
[19]Marge Piercy, trecho de “Contribution to Our Museum”, em Living in the Open. N.Y.: Knopf, 1976, pp. 74-75.

 

Publicado originalmente como
“Socialism, Anarchism and Feminism”
em Second Wave, vol. 5, nº 1, Boston, 1977
Traduzido por Cami Álvares Santos