Um Manifesto Anarquista

Louisa Sarah Bevington

 

Companheiros trabalhadores,

Vimos perante vocês como anarquistas comunistas para explicar nossos princípios. Estamos cientes de que as mentes de muitos de vocês foram envenenadas pelas mentiras que todos os partidos diligentemente espalharam sobre nós. Mas certamente as perseguições às quais fomos e estamos sujeitos pelas classes governantes de todos os países devem abrir os olhos daqueles que amam o jogo limpo. Milhares de nossos companheiros estão sofrendo na prisão ou sendo levados a ficar sem-teto de um país a outro. A liberdade de expressão – praticamente a única parte da liberdade britânica que pode ser de qualquer utilidade para o povo – nos é negada em muitas instâncias, como os eventos dos últimos anos demonstraram.

A miséria ao redor de nós está aumentando ano a ano. E no entanto, nunca ouve tanta conversa sobre trabalho quanto há agora, trabalho, pelo bem-estar do qual todos os políticos profissionais professam trabalhar dia e noite. Alguns muito poucos reformistas sinceros e honestos porém impraticáveis, na companhia de uma multidão de meros charlatães, caçadores de cargos etc., dizem ser capazes de beneficiar o trabalho, se o trabalho apenas seguir seu conselho inútil. Tudo isso não diminui a miséria em nada: vejam os desempregados, as vítimas da fome e do frio, que morrem todos os anos nas ruas de nossas cidades ricas, onde riquezas de todo tipo estão armazenadas.

Não apenas sofrem os que estão realmente sem trabalho e passam fome, mas cada homem trabalhador que é forçado a passar pela mesma rotina monótona dia a dia – a escravidão e a labuta na fábrica ou na oficina –, pelo lar triste, se é que os lugares onde eles são forçados a se arrebanhar podem ser chamados de lares. Essa vida vale a pena ser vivida? O que acontece com as faculdades intelectuais, com as inclinações artísticas, não, com o sentimento humano comum e com a dignidade da maior parte dos trabalhadores? Todos eles são empenados e desperdiçados, sem qualquer chance de desenvolvimento, tornando o trabalhador miserável nada além de uma ferramenta humana a ser explorada até ser substituído mais lucrativamente por alguma nova invenção ou máquina.

Toda essa miséria é necessária? Ela não é se vocês, os produtores da riqueza, soubessem que há comida e necessidades vitais suficientes e em reserva para todos, se todos trabalhassem. Mas agora, para manter os ricos no ócio e no luxo, todos os trabalhadores devem levar uma vida de miséria e exploração eternas. Quanto a esses fatos nós todos concordamos; mas quanto ao remédio, a maioria de vocês, infelizmente, não abandonaram a confiança no parlamento e no Estado. Iremos explicar agora como a própria natureza do Estado previne que qualquer coisa boa venha dele. O que o Estado faz? Ele protege os ricos e sua fortuna adquirida impropriamente; ele suprime as tentativas dos trabalhadores de recuperar seus direitos, se essas tentativas são consideradas perigosas para os ricos. Logo, a campanha política fiada, a política trabalhista etc. não são suprimidas, mas qualquer manifestação popular efetiva, greves vigorosas como as de Featherstone e de Hull, propaganda anarquista etc. são suprimidas ou combatidas pelos meios mais vis. Além disso, o Estado, fingindo daí por diante aliviar os sofrimentos do povo, concede comissões reais sobre o sistema de trabalho por tarefa, sobre os idosos pobres, sobre trabalho em geral, ou comitês eleitos sobre o desemprego – que produzem amontoados de catálogos, e dão oportunidade aos políticos e líderes de trabalho para “se exibir”. E isso é tudo. Se os trabalhadores exigirem mais – há o asilo; e se não estiverem satisfeitos com isso, os cassetetes da polícia e as balas e baionetas dos soldados os encaram: – não pão, mas chumbo!

Todas as promessas políticas têm o mesmo valor: ou elas não são mantidas, mesmo se poderiam ser, ou elas envolvem mudanças sociais que só podem ser efetivadas por uma revolução, e não por meros votos no parlamento. Isso se aplica às promessas dos candidatos socialistas, mesmo se fosse possível ser admitido que esses candidatos poderiam permanecer incorruptíveis pela influência desmoralizante do parlamento.

Não pode haver humanidade verdadeira, nenhum respeito próprio verdadeiro, sem autoconfiança. Ninguém pode ajudar vocês se vocês não se ajudarem. Nós não prometemos fazer nada por vocês, nós não queremos nada de vocês, nós só rogamos a vocês que cooperem conosco para trazer um estado de sociedade que tornará a liberdade, o bem-estar possível para todos.

Para fazer isso eficientemente, devemos todos estar imbuídos do espírito da liberdade, e esta – a liberdade, e somente a liberdade – é o princípio fundamental da Anarquia.

A liberdade é uma condição necessária, e a única garantia, para o desenvolvimento adequado da humanidade. A natureza é mais bela quando intocada pela interferência artificial do homem. Animais selvagens são mais fortes e harmoniosamente desenvolvidos do que seu tipo domesticado, que a mente exploradora do homem torna meros instrumentos de lucro ao desenvolver principalmente as partes deles que são de uso para ele. O mesmo ameaça ser o caso com as vítimas humanas da exploração se um fim não é posto ao sistema que permite que os ricos e habilidosos exploradores reduzir a maior parte da humanidade a uma posição que lembra aquela dos animais domésticos – máquinas de trabalho, próprias somente para fazer mecanicamente um certo tipo de trabalho, mas tornando-se intelectualmente destroçadas e arruinadas.

Todos que reconhecem que esse é o maior perigo ao progresso humano devem cuidadosamente ponderá-lo, e se eles acreditam que é necessário assegurar por todos os meios necessários o livre desenvolvimento da humanidade, e remover de todas as formas cada obstáculo colocado em seu caminho, eles devem se juntar a nós e adotar os princípios do anarquismo.

Crença em e submissão à autoridade é a raiz de toda nossa miséria. O remédio que recomendamos: – lutar até a morte contra toda autoridade, quer seja aquela da força física idêntica ao Estado ou aquela da doutrina e das teorias, o produto de eras de ignorância e superstição inculcadas na mente dos trabalhadores desde sua infância – tais como a religião, o patriotismo, a obediência à lei, a crença no Estado, a submissão aos ricos e intitulados etc., falando de maneira geral, a ausência de qualquer espírito crítico frente a todas as bobagens que vitimizam os trabalhadores de novo e de novo. Nós podemos apenas tratar aqui brevemente de todos esses assuntos, e devemos nos limitar a tocar somente nos pontos principais.

A exploração econômica – o resultado da monopolização da terra, da matéria-prima e dos meios de produção pelos capitalistas e senhorios – está na base da miséria atual. Mas o sistema que a produz teria quebrado há muito tempo atrás se não tivesse sido sustentado por um lado pelo Estado, com seus exércitos de oficiais, soldados e policiais – em uma palavra, a completa maquinaria do governo; e pelo outro lado, pelos próprios trabalhadores, que mansamente se submetem à sua própria espoliação e degradação, porque pensam que ele está certo, o que se deve a uma crença supersticiosa em uma providência divina inculcada por seus mestres, ou porque desejam, por meios ocultos, que eles mesmos sejam exploradores – um objetivo em que somente um em mil pode ter sucesso – ou porque eles não perderam a fé na ação política ou na capacidade do Estado em fazer por eles o que eles são ignorantes demais para fazer por si mesmos. Sob essas proteções, as classes abastadas estão aproveitando seu espólio em segurança e conforto.

É evidente que este sistema, se for para ser destruído, deve ser atacado pelos próprios trabalhadores, já que não podemos esperar que aqueles que lucram com ele cortem suas próprias gargantas, por assim dizer.

Muitos ainda consideram o Estado uma necessidade. Ele é realmente necessário? O Estado, sendo apenas uma máquina para a proteção e a preservação da propriedade, pode apenas obstruir a liberdade e o livre desenvolvimento, estando atado à manutenção da lei, e cada lei estatutária é um obstáculo ao progresso e à liberdade.

Existem dois tipos de leis. Elas são simples fórmulas, derivadas da observação de fenômenos como as ditas leis da natureza, cujas expressões estão abertas a revisão com o progresso do conhecimento humano e o acúmulo de material fresco do qual retirar deduções. Nenhuma autoridade é requerida para executá-las, elas existem; e todo ser ordena sua conduta em conformidade com seu conhecimento de sua ação. O fenômeno da produção de fogo é o resultado de uma lei natural, e todos prestam atenção a ela apesar de não haver policiais afixados por trás de cada palito de fósforo e lareira. Aqui novamente a natureza nos dá um exemplo de desenvolvimento livre e anarquia, e em uma sociedade livre todos os fatos e necessidades sociais seriam igualmente bem reconhecidos e tratados.

Mas há outro tipo de lei. Aquela que é a expressão da vontade de uma minoria inescrupulosa que, devido à apatia e à ignorância da maioria, foi capaz de usurpar as formas de poder e alegam representar o povo inteiro o tempo todo no momento do decreto das leis.

O fato de que um grande número de pessoas está a favor de algo evidentemente não é garantia de que ele está certo. A experiência, pelo contrário, mostra que o progresso é geralmente trazido por indivíduos. Novas descobertas, novas linhas de atividade humana são primeiro encontradas e praticadas por poucos, e somente gradualmente adotadas pelos muitos. A maioria que faz a lei ou que as obedece irá quase sempre ficar para trás do progresso, e as leis feitas por ela serão reacionárias desde o começo. Muito mais ainda à medida que o tempo avança e novo progresso é feito!

É claro, o próprio progresso ri dos esforços débeis dos usurpadores do poder em parar sua marcha triunfante. Mas seus apóstolos e defensores devem sofrer muito e severamente pelo entusiasmo e pela esperança que está dentro deles. A prisão e, frequentemente, a própria morte é sua condenação, a pena por ter levantado o estandarte da revolta contra a autoridade e a lei, a personificação do espírito da opressão.

E os próprios criadores dessas leis são forçados a admitir que seu trabalho é inútil. Não é a manufatura contínua de novas leis que acontece nos parlamentos de todos os países através da maior parte deste século, e na Inglaterra por muitos séculos, uma prova do fato de que as leis nunca satisfazem qualquer pessoa, nem mesmo aqueles que as criam? Eles sabem, contudo, que sua legislação é mera zombaria e hipocrisia, não tendo outro objetivo senão fazer o povo acreditar que algo está sendo feito por eles, e que o interesse público está sendo bem cuidado. O povo obedece todas essas leis, enquanto o Estado, no suposto interesse de todos, na realidade no interesse dos donos de propriedades e de seu próprio poder, viola todas elas e comete crimes inumeráveis – que são glorificados como ações de coragem cometidas no interesse da civilização.

Este princípio, mantido no pano de fundo em tempos de paz, é ostentado perante os olhos dos chamados “direitos” em algum território selvagem, e saqueia e provoca os nativos até que eles retribuam força com força. Então o Estado intervém, no pretenso interesse da religião e da civilização, os massacra e anexa sua terra. Quanto maior o massacre, maior a glória para esses “heroicos” pioneiros. Ou pode ser em uma guerra em maior escala com um Estado europeu, onde os trabalhadores de um país são soltos contra os de outro, para assassinar, saquear e queimar lares e vilarejos, e realizar tais atos patrióticos de valentia e cavalheirismo.

Nós anarquistas somos internacionalistas, não reconhecemos distinção de nacionalidade ou cor. Os trabalhadores de todos os países sofrem como nós sofremos aqui, e nossos companheiros têm todos os lugares para lutar a mesma batalha pela liberdade e pela justiça. Os capitalistas são internacionalmente unânimes em perseguir os defensores da liberdade e em depenar os trabalhadores. Mesmo a Inglaterra é trazida mais e mais para baixo da influência de um sistema policial continental, os perigos do qual as massas britânicas não enxergam no presente, já que ele está sendo usado principalmente contra refugiados estrangeiros abandonados. Eles estão alheios ao fato de que ele é nada menos que o precursor de um ataque às suas próprias liberdades.

Os trabalhadores, como regra, estão cheios de desgosto dos trabalhadores de outros países, os quais seus mestres conseguiram lhes representar como seus inimigos naturais, e aqui está uma das maiores fontes da força do sistema capitalista; uma força que não tem outra fundação além da fraqueza e do desamparo do povo. Está nos interesses de todos os governantes sustentar o patriotismo, ter seu próprio povo pronto para voar sobre as gargantas de seus colegas trabalhadores de outras nacionalidades quando quer que agrade os interesses dos empregadores para abrir novos mercados, ou trazer a atenção do povo para longe da contemplação de sua própria miséria, o que pode levá-los à revolta.

O patriotismo e a religião sempre foram os primeiros e últimos refúgios e fortalezas dos patifes. Os dóceis e mansos serventes de um abençoando – em nome de seu Deus – as infâmias cometidas pelo benefício do outro, e amaldiçoando no mesmo nome as ações que eles acabaram de abençoar se cometidas pelo inimigo.

A religião é a maior maldição da humanidade! É absurdo esperar que a ciência, nos poucos anos que o Estado e os padres a deixaram, até certo ponto, em paz – a estaca ou a prisão foram muito frequentemente a recompensa de seus pioneiros – tivesse descoberto tudo. Não valeria a pena viver em um mundo onde tudo tivesse sido descoberto, analisado e registrado. Um fato é certo: todas as chamadas religiões são os produtos da ignorância humana, meros esforços fantasiosos de bárbaros para racionalizar matérias que eles não poderiam entender sem algum conhecimento de ciência e de métodos científicos. A opinião do selvagem sobre a força que faz um motor a vapor funcionar, ou produz energia elétrica, é evidentemente inútil e pode ser refutada por qualquer pessoa que possua conhecimento básico. Da mesma maneira, nossos antepassados, também selvagens, racionalizaram os fenômenos da natureza, e chegaram à conclusão ingênua de que alguém por trás das cortinas do céu manipulava seus fios. Este suposto indivíduo eles chamaram de Deus e a força orgânica do homem, alma, e dotaram esta de uma entidade separada, apesar de que a força orgânica não é mais possuidora de uma entidade separada do que aquela que trabalha em um relógio ou um martelo-pilão. Uma consciência turva disso permeou a mente da maioria apesar do fato de que a religião foi reforçada por todas as forças da autoridade, porque ela ensina submissão à lei, e como recompensa dá cheques descontados no banco do céu, que não são mais passíveis de serem encontrados do que as promessas dos políticos do que ele irá fazer quando for devolvido ao parlamento. A religião é o inimigo mais mortal do progresso humano. Ela sempre foi usada para envenenar a mente e amortecer o julgamento dos jovens, assim levando pessoas adultas a aceitar todos os seus absurdos porque se familiarizaram com elas em sua juventude.

Infelizmente, a religião não é mantida fora do movimento operário. Padres e párocos, que deveriam ser um horror para a humanidade, já que sua presença acrescenta um elemento adicional de corrupção, entram furtivamente nele, e políticos trabalhistas usam seus serviços da mesma forma que os liberais e os conservadores. Existe atualmente um corpo de pessoas que prostituem a nobre palavra “trabalho” ao acoplá-la à repugnante palavra “igreja”, formando a “igreja do trabalho”, que é vista favoravelmente pela maioria dos líderes trabalhistas proeminentes. Por que não começar uma “polícia do trabalho”?

Somos ateístas e acreditamos que a humanidade não pode ser livre se ela não se livrar dos grilhões da autoridade do absurdo da mesma forma que de qualquer outra autoridade. A autoridade assume diversas formas e disfarces, e vai levar um longo tempo de desenvolvimento sob liberdade para nos livrarmos de todas. Para fazer isso, duas coisas são almejadas, nos livrarmos de toda superstição e desenraizarmos a fortaleza de toda autoridade, o Estado.

Esta declaração aberta de nossas convicções não implica em qualquer espírito de perseguição de nossa parte contra aqueles que acreditam nos absurdos das diferentes religiões. A perseguição é essencial à autoridade e à religião, e fatal à liberdade; destruiríamos a base de nossas próprias esperanças e ideais se algum dia fôssemos levados pelo espírito de perseguição, de fanatismo e de intolerância, que é tão comumente levantado contra nós.

Irão nos perguntar o que pretendemos colocar no lugar do Estado. Nós respondemos “Absolutamente nada!”. O Estado é simplesmente um obstáculo ao progresso; uma vez removido este obstáculo, não desejamos erigir uma nova obstrução.

Nisso diferimos essencialmente das várias escolas de socialistas estadistas, que querem ou transformar o Estado presente em uma instituição benevolente e de espírito público (tão fácil quanto transformar um lombo em um cordeiro), ou criar uma nova organização centralizada para a regulação de toda produção e consumo, a chamada sociedade socialista. Na realidade, isso é apenas o Estado antigo disfarçado, com poderes enormemente fortalecidos. Ele interferiria com tudo e seria a essência da tirania e da escravidão, se ele pudesse ser ocasionado. Mas, graças à tendência das maneiras e dos meios de produção – que irão levar à anarquia –, ele não pode.

Mas enquanto o socialismo estatal é impraticável como sistema de socialismo real, é de fato possível que, caso seus defensores fizessem à sua maneira, todos os assuntos de interesse geral e mais e mais também de interesse privado passariam a estar sob o controle do Estado; quer seja um pouco mais democratizado ou não, não importa, pois nós rejeitamos a democracia assim como o absolutismo. A autoridade é igualmente detestável para nós quer exercitada por muitos, ou por poucos, ou por um. O último remanescente de iniciativa livre e autoconfiança seria esmagado sob os calcanhares do Estado, e a emancipação dos trabalhadores estaria tão longe quanto sempre. O socialismo estadista de fato fortaleceu a fé decadente e renovou o prestígio do Estado.

Tudo o que nós anarquistas queremos é a igual liberdade para todos. Que os trabalhadores forneçam para seus próprios assuntos por arranjos voluntários entre si. Isso nos leva a uma consideração da base econômica do estado das coisas que desejamos ocasionar, e aqui nós nos declaramos comunistas.

Todo mundo tem diferentes faculdades e habilidades para o trabalho, e diferentes vontades e desejos para as várias necessidades de vida e de laser. Essas inclinações e desejos requerem total satisfação, mas somente podem recebê-la em um estado de liberdade. Todo mundo supondo que suas faculdades sejam propriamente desenvolvidas pode julgar melhor o que é melhor para si. Regras e regulamentos iriam atrapalhar e torná-lo um ser restrito e incompleto que necessariamente não encontra prazer no trabalho forçado sobre si. Mas sob anarquia, associa-se voluntariamente com outrem para fazer o trabalho para o qual se está melhor adequado, e satisfazem-se os desejos na proporção das necessidades a partir do estoque comum, o resultado do trabalho em comum.

A competição feroz pelas necessidades mínimas da vida seria eliminada, deixando muitos assuntos de um caráter mais individual, privado e íntimo, no qual o indivíduo livre encontraria oportunidade para a emulação pacífica e harmoniosa, e portanto desenvolveria suas faculdades no maior grau possível.

Uma das objeções mais imediatas contra o comunismo anarquista é que ninguém trabalharia. Nós respondemos que o trabalho atual é visto com desfavor e negligência por todos que podem existir sem ele porque ele deve ser conduzido sob as condições mais desvantajosas e é, ademais, visto como degradante. O trabalhador ganhando seu alimento pelo trabalho árduo e pela labuta incessante é um pária, rejeitado pela sociedade, enquanto o ocioso que nunca fez uma hora de trabalho em sua vida é admirado e glorificado, e gasta seus dias em conforto luxuoso entre arredores agradáveis. Acreditamos que sob anarquismo todo mundo estaria disposto a trabalhar; o trabalho estando livre do distintivo da desonra agora associado a ele terá se tornado um trabalho de amor, e o homem livre sentirá vergonha de comer alimentos que ele não mereceu. Mas quanto a alguns remanescentes atávicos da sociedade capitalista moderna que somente trabalhariam se forçados? Bem, ninguém iria querer que atrasássemos a emancipação da imensa massa da humanidade por conta desses poucos seres antissociais que podem ou não existir então. Deixados a sós e desprezados por todo mundo eles logo iriam voltar aos seus sentidos e trabalhar.

Não podemos adentrar mais aqui nos argumentos que mostram a tendência do desenvolvimento ao comunismo livre, e nos referimos à literatura sobre o assunto. (Veja Anarquismo: Suas Bases e Princípios, de Kropotkin.)

A sociedade anarquista irá consistir de um grande número de grupos devotados à produção de certas mercadorias de acesso livre a todos, e ao contato local e interlocal com outros grupos para fazer acordos e arranjos para os propósitos de troca. Com relação às necessidades primeiras da vida, comida, roupas, abrigo, educação, o comunismo livre seria implementado completamente. Todos os assuntos secundários seriam deixados a acordos mútuos das formas mais variadas. Restaria liberdade completa em tal sociedade para o individualista desde que ele não desenvolvesse quaisquer tendências monopolistas.

Esses são nossos princípios; consideremos os meios de realizá-los.

Aqui nós somos recebidos pelos gritos de “Dinamiteiros!”, “Assassinos!”, “Demônios!” etc. Vejamos quem é que mais pronuncia esses gritos.

As mesmas pessoas que, por desastres em minas de carvão, por manter os navios podres, por incêndios em casas-armadilha, por acidentes em estradas de ferro causadas por sobretrabalho etc. massacram diariamente mais pessoas do que os anarquistas de todos os países já mataram. As mesmas pessoas que estão prontas a qualquer momento para chacinar os nativos de qualquer país, simplesmente para roubá-los, que estão encantados com a carnificina da guerra chinesa, que irá lhes permitir fazer novo lucro, que estão lentamente esfomeando e matando os milhares de trabalhadores, cujas vidas são encurtadas pelo sobretrabalho, pela comida adulterada, e por favelas superlotadas. Essas pessoas possuem, aos nossos olhos, nenhuma voz quando a questão da humanidade é considerada. Eles podem abusar de nós e nos insultar o quanto quiserem. A pior coisa que poderia acontecer a nós, de fato, seria vencer sua aprovação, ser mimado por eles como os respeitáveis políticos trabalhistas são.

Algumas pessoas bem-intencionadas, porém de mente bastante fraca também, são iludidas por esses gritos. A estas dizemos que venham e estudem nosso movimento e ganhem conhecimento de sua história e personalidades, e descobrirão que cada ato de revolta é apenas uma resposta a uma centena, não, um milhar de crimes vis cometidos pelas classes governantes contra nós e contra os trabalhadores em geral. Descobrirão que aqueles que fizeram esses atos eram os melhores, os mais humanos, altruístas, abnegados de nossos companheiros, que jogaram suas vidas fora, encontrando a morte ou o aprisionamento na esperança de que suas ações semeassem o gérmen da revolta, que pudessem mostrar o caminho e acordar um eco, por seus atos de rebeldia, nas vítimas do sistema atual.

Com o modo de ação específico de qualquer pessoa nós não temos nada a ver. Anarquistas defendem a propagação de suas ideias por todos os meios que levam ao seu fim, e cada pessoa é a melhor juíza de suas próprias ações. Ninguém é obrigado a fazer o que for contra sua própria inclinação. A experiência é nesta assim como em outras questões a melhor professora, e a experiência necessária somente pode ser adquirida através da inteira liberdade de ação.

Logo, os meios que adotaríamos englobam tudo que avança nossa causa, e exclui tudo que a prejudica. A decisão do que é bom ou prejudicial deve ser deixada para as pessoas ou grupos que decidam trabalhar juntos.

Nada é mais contrário ao real espírito da anarquia que a uniformidade e a intolerância. Liberdade de desenvolvimento implica em diferença de desenvolvimento, consequentemente em diferença de ideias e ações. Cada pessoa deve estar disposta a estar aberta a um tipo diferente de argumento, de modo que a propaganda não pode ser diversificada o suficiente se quisermos tocar em todas. Queremos que ela permeie e penetre todas as declarações da vida, social e política, doméstica e artística, educativa e recreativa. Deveria haver propaganda por palavra e ação, o palanque e a imprensa, a esquina da rua, a oficina e o círculo doméstico, atos de revolta, e o exemplo de nossas próprias vidas como homens livres. Aqueles que concordam uns com os outros podem cooperar; de outra forma, eles devem preferir trabalhar cada um em seus próprios termos tentando persuadir um ao outro da superioridade de seu próprio método.

A organização surge da consciência de que, para um determinado propósito, a cooperação de várias forças é necessária. Quando este propósito é alcançado, a necessidade de cooperação cessa, e cada força reassume sua independência prévia para outras cooperações e combinações, se necessário. Isso é organização no sentido anarquista – sempre variáveis ou, caso necessário, contínuas combinações dos elementos que sejam considerados os mais adequados para o propósito particular à mão, e se refere não somente às relações econômicas e industriais entre homem e homem, mas também às relações sexuais entre homem e mulher, sem as quais uma vida social harmoniosa é impossível.

Estas visões diferem imensamente daquelas mantidas pelos crentes na autoridade, que defendem organizações permanentes com chefes ou conselhos eleitos pela maioria, e que colocam toda sua confiança nessas instituições. Quanto mais eles centralizam essas organizações e introduzem regras e regulamentos estringentes para preservar a ordem e a disciplina, mais eles falharão em alcançar seu objetivo. Em tais organizações vemos somente obstáculos para a livre ação e iniciativa dos indivíduos, incubadoras de ambição, egoístas e podres crenças na autoridade etc. Isso significa que vemos nelas agentes da reação para manter o povo na contínua ignorância de seus próprios interesses.

Nós não desencorajamos por esse motivo que os trabalhadores se organizem, mas tais organizações podem somente ser grupos livres de homens e mulheres com os mesmos objetivos para propósitos idênticos, debandando quando o objetivo em vista é alcançado.

Isso nos traz à questão do aconselhamento de que anarquistas se juntem aos sindicatos, não a questão de associação aos sindicatos que possam ser uma necessidade para eles pela forma como a situação se encontra, mas a questão de propaganda dentro deles. Os anarquistas não desejam se isolar e os sindicatos podem ser úteis como lugares para encontrar seus companheiros trabalhadores. Mas se sindicatos devem ser formados por anarquistas é inteiramente dependente do caso em particular, pois nós não consideramos o sindicalismo como constituído no momento presente como uma força séria para destituir o sistema, mas somente como um meio de conseguir uma provisão um pouco melhor para os trabalhadores sob as condições atuais. Portanto, eles não podem ser implementados sem lidar com chamadas questões práticas imediatas, que nunca são resolvidas sem cessões, já que não são todos os membros que são anarquistas.

Em sindicatos, a greve geral poderia formar um assunto apropriado para iniciar a propaganda, e tal greve, apesar de por si mesma não ser eficiente como remédio, provavelmente traria situações revolucionárias que avançariam a marcha dos eventos de maneira sem precedentes. Para falar claramente, defendemos a greve geral como um meio de colocar as coisas em andamento: quem sabe se ela não pode levar à revolução social, que todos desejamos como a única coisa que pode nos ajudar.

A revolução social, como concebemos, consistiria na paralisação de todas as instituições e organizações autoritárias existentes, na prevenção de novas organizações deste caráter, na expropriação dos atuais exploradores do trabalho, e no rearranjo das relações entre homens na base de acordos voluntários. Isso parecerá para alguns ser um programa bastante grande, mas o pensamento lógico os convencerá do fato de que cada um desses pontos é a consequência necessária de outros, e que eles somente podem ser conduzidos juntos, ou de forma alguma serão. Pois o que é realmente impraticável não são as medidas completas, mas aquelas medidas desanimadas – chamadas reformas – que fingem sumir com uma parte da miséria existente, enquanto a raiz permanece intacta e torna toda a reforma fútil e inútil.

Esses então são nossos meios de propaganda, e nós confiamos que eles sejam variados o suficiente para permitir que todo mundo que escolha seu lugar entre nós tenha o escopo completo para suas energias. A ideia principal de nossa propaganda deve sempre ser oposição e destruição do princípio da autoridade em todas as suas formas e disfarces – escopo completo para a liberdade, a base e a condição de todo desenvolvimento e progresso humano.

Em conclusão, consideremos brevemente os remédios propostos pelas outras partes – inúteis do jeito que são, como a miséria sempre crescente ao redor de nós demonstra abundantemente.

Os partidos do socialismo estadista, tirando uns poucos socialistas puros e simples que, se fossem verdadeiros com as fundações de suas opiniões, viriam até nós, nos últimos tempos se transformaram completamente em partidos para a defesa da ação política. Eles acreditam em enviar o homem certo para o parlamento, e nós temos a escolha entre os escolhidos do I.L.P., dos fabianos, e do S.D.F. Nós não consideramos suas diferenças menores: De que vale o princípio da ação política? – é a questão que perguntamos. Ele tem a intenção de fazer pressão sobre as classes governantes para efetuar mudanças sociais. Nós persistimos que nenhuma quantidade de pressão exercitada através da ação política pode trazer essas mudanças sociais. Alguns paliativos podem ser adotados, mas o sistema irá continuar a existir; pois esses partidos trabalhistas fazem os trabalhadores acreditar em meios constitucionais, na liderança e na idolatria de homens; em suma, eles irão destruir sua autoconfiança e seu respeito próprio, e fazer por eles o que a religião faz – fazê-los esperar tudo a partir dos outros, nada a partir de si mesmos. A história do movimento operário na Europa e na América mostra que quanto maiores esses partidos se tornam, menos avançados seus líderes se desenvolvem e menos é alcançado por essas organizações volumosas, de ferro fundido, sem restar espaço para liberdade nelas.

Não temos mais crença nos sindicatos como tal do que na ação política, entretanto preferimos aqueles sindicalistas que confiam em sua própria ação ao invés daquelas dos que clamam por ajuda estatal. Nossa propaganda pode algumas vezes usar essa questão como ponto de partida.

O movimento cooperativo pode somente beneficiar alguns que permanecem despercebidos entre a miséria geral. A cooperação produtiva em grande escala teria que competir com o capitalismo, que desapiedadamente corta salários e recebe um suprimento de trabalho barato dos desempregados. Cooperadores teriam que trabalhar em termos similares, aqueles da maior exploração do trabalho possível e que não serão remédio para as necessidades do trabalho, ou eles seriam esmagados pela competição capitalista, de fato sendo as primeiras vítimas de uma crise comercial. Logo, em larga escala a cooperação é impraticável, e aqueles que tomam parte nela em sua forma presente são em demasia frequentemente isolados do movimento operário geral. Então consideramos cooperadores como trabalhadores que não são um fator essencial na luta vindoura.

Os “amigos” dos trabalhadores mais maldosos e repulsivos são os abstêmios, os maltusianistas e os defensores da poupança e da economia, cada um propondo seu crochê particular como remédio infalível para a pobreza. Eles querem que os trabalhadores abandonem os mínimos resquícios de prazer e regozijo, por mais adulterados e reles, que lhes restam. “A hipocrisia é o elogio que o vício faz à virtude”, diz o provérbio, e as outras partes fazem promessas de coisas melhores a qualquer taxa, mas esses querem tornar a vida ainda mais deprimente e infeliz. Economicamente, eles estão totalmente errados. Se todos se contentassem como os  asiáticos, com um punhado de arroz por dia, os salários seriam reduzidos por competição até o nível dos salários dos asiáticos – alguns centavos por dia. Queremos que o padrão de vida dos trabalhadores suba, não desça, e todas as coisas às quais esses “amigos” protestam pertençam a uma vida humana real e completa.

Não precisamos insistir em todos os malucos que possuem remédios pré-definidos como os defensores do comércio livre, que ignoram o princípio de toda sociedade com propriedade privada: “Sem propriedade, sem crédito”. Para ser beneficiado por cheques, seria necessário possuir algum tipo de propriedade portátil ou realizável que fosse dada em troca pelos cheques ou para tê-los assegurados. Nada seria alterado por eles, eles poderiam simplesmente perpetuar os piores males do sistema presente em uma forma mais agravada. Ao trabalhador que não tem propriedade alguma além de seu trabalho para dispor, em tempos em que o trabalho é afrouxado e a labuta não está portanto sob demanda, ele não ofereceria qualquer recurso, e ainda estaria obrigado a sofrer e a passar fome. Para tornar o remédio proporcional ao mal que se propõe curar, seria requisito abolir toda propriedade privada e tornar a terra e tudo que ela contém, junto com todos os implementos da produção, propriedade comum – ou seja, introduzir o comunismo, onde dinheiro e cheques se tornarão igualmente inúteis.

Como vocês terão visto, o anarquismo não prega qualquer coisa contrária aos princípios que sempre inspiraram os homens a lutar pela liberdade e pelo correto. Seria de fato absurdo tentar impor algo novo sobre a humanidade. Não! O anarquismo não é nada além do reconhecimento completo da realização do princípio de que a liberdade é a raiz do desenvolvimento natural sensato. A natureza não conhece leis externas, poderes externos, e somente segue suas próprias forças internas de atração ou repulsão. Tudo é o resultado das forças e tendências existentes, e este resultado transforma-se novamente por sua vez a causa da próxima coisa que se segue. Em sua infância, a humanidade sofreu com a ignorância desta causa, e ainda sofre por ser pisada pelo calcanhar da imaginária autoridade celestial e humana (ambas surgindo a partir dos mesmos recursos – ignorância e medo do desconhecido). Todo progresso foi feito lutando e desafiando a autoridade. Grandes homens na história – homens que fizeram trabalho real, ou seja, trabalho útil para o progresso da raça humana ao quebrar e desafiar leis e regulamentos feitos aparentemente por tempo eterno – mostraram à humanidade novas rotas, abriram novo chão. Esses eram rebeldes, e os últimos nesta série – aqueles que desejam não apenas que eles mesmos sejam livres, mas que viram o que aqueles perante eles não viam tão claramente, que para nos libertarmos devemos estar cercados de homens livres; que a escravidão do ser humano mais maldoso é nossa própria escravidão. Aqueles últimos rebeldes pela liberdade e pelo progresso são os anarquistas de todos os países, e em solidariedade a eles pedimos a vocês.

Estudem nossos princípios, nosso movimento, e, se eles os convencerem, juntem-se a nós em nossa luta contra a autoridade e a exploração, pela liberdade e pela felicidade de todos.

 

Publicado originalmente como
“An Anarchist Manifesto” por
London Anarchist Communist Alliance,
Londres, 1º de maio de 1895
Traduzido por Cami Álvares Santos