Sobre o Anarquismo na América Latina Hoje

Nelson Méndez

 

Com a quebra das certezas estáticas que haviam reinado nas décadas anteriores a 1990, as ideias e práticas ácratas passaram a ter uma audiência que lhes era desconhecida há tempos, mesmo sem gerar um auge imediato ou sem maiores trâmites. Às vezes operaram influências de fora da área continental, quando ficou claro que o pensamento e a ação mais chamativos no resto do mundo em referência à reativação das lutas sociais, à organização coletiva que superasse os falidos modelos leninistas, ou à definição de propostas revolucionárias consequentes, vinha em medida crescente do campo libertário. A isto se une o descobrimento que distintos atores sociais, em contextos diferentes, faziam agora tanto das ideias do anarquismo como de sua história em nossos países, pois na esquerda a excludente hegemonia doutrinária do marxismo e de seus parciais estava se debilitando. Assim, ao longo de um intervalo que chega até hoje e cobre todos os confins da América Latina, um crescente número de ativistas, de jovens com perguntas e inquietudes, de mulheres, de indígenas, de estudantes, de trabalhadores, de pessoas com curiosidade intelectual, se aproximam do ideal anarquista com interesse que só tem precedentes no que despertou no começo do século XX.

Até 1995-1996, quando a Internet era uma novidade somente ao alcance de uma minoria em nossos países, começa a ser usada como via de contato, intercâmbio e difusão do anarquismo. Resultou em um meio muito adequado para esses fins, logo quando nos anos seguintes a rede de redes se abriu paulatinamente até chegar a um uso bastante extenso entre a população, resultando em uma ferramenta muito valiosa neste ressurgir do anarquismo. Não somente pelas possibilidades de comunicação instantânea, ou de trocar informação em amplos volumes e a custos cada vez mais baixos, mas porque fomentou modos de relação horizontal, coordenação não hierárquica e ação em rede que são práticas anarquistas de sempre.

Renascendo das cinzas

Vivemos nos 20 anos recentes um retorno do anarquismo latino-americano, com precisos e comprováveis indicadores: multiplicação de publicações periódicas (impressas e virtuais), junto a esforços reanimados para distribuir livros e folhetos libertários clássicos ou de escrita recente; o contínuo brotamento de coletivos e espaços de inspiração ácrata (mesmo em lugares sem antecedentes anarquistas); plurais e criativas expressões de ciberativismo; notória reaparição da militância, das propostas e dos símbolos do anarquismo em distintas situações concretas da luta social; manifestações vivazes e reconhecíveis nos mais diversos âmbitos da cultura, seja nas artes figurativas, nos cenários, nas músicas, na literatura, na pesquisa e na reflexão sócio-histórica. Tudo o que foi dito evoca de alguma maneira o panorama libertário continental de há um século, mas ressalta uma diferença cardinal: falta a primazia do enfoque e da ação anarcossindicalista que houve naquele tempo. Não cessam hoje os esforços para recuperar algo de uma presença outrora tão visível, mas a lentidão dessa recuperação no meio trabalhista contrasta com a perspectiva animadora em outros campos.

O quadro do anarquismo no Novo Mundo é completado com a referência às tensões e desafios com que deve lidar hoje, assinalando antes três fontes para essa reflexão. Em primeiro lugar, o livro póstumo do lembrado companheiro Daniel Barret, Los Sediciosos Despertares de la Anarquía (2011), que na minha opinião contém o exame mais completo que já foi feito sobre as realidades e tarefas a serem afrontadas hoje pelo movimento anarquista latino-americano. A segunda referência é a lista de correio eletrônico Anarqlat, que desde 1997 é um fórum virtual de intercâmbio para o movimento libertário continental, e ali manifestou-se de modo importante sua história recente. O terceiro suporte está na página virtual do periódico venezuelano El Libertario, cuja seção de textos possui diversos e densos trabalhos em torno da atualidade do anarquismo latino-americano, mais um dossiê que recompila o que foi publicado sobre esse tópico na edição impressa deste porta-voz ácrata.

Aprender com a história, construir autonomia

A recente publicação de obras que abrem rumos para reconstruir a memória do anarquismo na área contribui para o avanço do conhecimento histórico e para esclarecer debates entre eruditos, mas para nós é muito importante na recuperação da capacidade de expor interpretações próprias e pertinentes sobre a sociedade, a política e a cultura de nossos países, o que requer uma compreensão cabal do que fomos, do que somos e do que aspiramos ser. Necessitamos de uma história resgatada das armadilhas positivistas, liberais ou marxistas, e também de conhecimento e de aprofundamento recriador quanto ao ideal ácrata, vencendo preconceitos contra o saber e a capacidade intelectual fora da tradição anarquista de gente que lê para refletir, debater e construir a utopia possível. Isto vem muito ao caso para o presente e para o futuro do anarquismo continental, pois devemos reconstruir e fazer avançar um pensamento-ação próprio, diferente não apenas do que concebem nossos adversários óbvios da direita, mas do que propõe um marxismo que em diferentes lugares do continente exerce agora a função de gestor do Estado e garante os interesses do capitalismo globalizado, papel que seus variados exponentes cumprem por igual apesar das diferenças na maquiagem.

Seria desastroso se o anarquismo fosse incapaz de definir esse curso autônomo que foi uma de suas fortalezas no passado, o que de nenhum modo significa ilhar-se, mas sim manter nosso perfil próprio e não diluir nossos objetivos específicos. Já dissemos que é sua obrigação recriar-se para enfrentar as novas circunstâncias, mas ele desnaturaliza sua identidade se isso é feito buscando eficácia nas esgotadas plataformas organizacionais do leninismo, se promove um anti-imperialismo onde o grito de denúncia ao agressivo intervencionismo ianque se cala frente a outras potências imperiais de similar disposição, se questiona o capitalismo privado para desculpar o capitalismo estatal, se aceita que os avanços na conquista do pão desculpem os retrocessos na conquista da liberdade, se propõe que com a tolerância e mesmo o patrocínio de “Estados progressistas” é possível erigir “poder popular”. Enfim, se o anarquismo recai nas vias que conduziram o marxismo a fracassar como opção de mudança revolucionária positiva, paradoxalmente dá razão aos augúrios do autoritarismo vermelho sobre a impossibilidade do socialismo libertário.

Nem populismo, nem isolamento, nem passividade

Desde os anos de 1930 e 40 o anarquismo latino-americano tem um desafio pendente: como enfrentar com êxito a demagogia do populismo nacionalista, que em suas variantes mutáveis é ainda uma figura dominante da cena política continental. A atual onda de “governos avançados” é a nova máscara desse velho oponente, perante a qual é vital contestar com respostas específicas na prática e bem articuladas na teoria, que tornem patente aos olhos do coletivo a fraude desses pretensos sucessos estatais e das supostas boas intenções dos governantes, promovendo e atuando a partir de baixo na construção de saídas realistas de ação autônoma, alheias às disputas pelo manejo do Estado e independentes das instituições de poder. Estas ideias gerais (e sua execução prática) requerem ainda muita reflexão e trabalho por parte do movimento ácrata latino-americano, no qual sem dúvida não há lugar para repetir pífias marxistas, tampouco para ignorar por agora e deixar para depois, nem para optar pela tolerância cúmplice ou para apoiar como aliados menores os populistas “menos maus”, aqueles que se dizem de esquerda ou socialistas. Evidência da urgência de tal desafio, das confusões que gera e do dano persistente que o anarquismo sofreu por não decifrá-lo, é que agora temos que lidar com “anarcochavistas”, na Venezuela, como se não bastassem as lamentáveis paródias do “anarcoperonismo”, do “anarcobattlismo”, no Uruguai, e do “anarcocastrismo” cubano.

Há algo essencial para que o esperançoso retorno ácrata termine de arraigar: consolidar o anarquismo como ferramenta válida e construtiva para as lutas sociais autônomas de hoje, que além disso as oriente em direção à perspectiva de revolução inerente ao ideal libertário. Sem dúvida, os impulsos do vigente renascimento na América Latina tiveram sua raiz conjuntural em processos da cultura de massas como a difusão do punk, intelectuais como a revitalização do interesse pelas ideias ácratas, e políticos como irrupção neozapatista de 1994 e o auge do movimento antiglobalização a partir de Seattle em 1999, mas se logo puderam se manter é porque em diversos modos vão conseguindo se conectar com demandas e conflitos coletivos, como verificará qualquer pessoa que percorrer o panorama contemporâneo do ativismo e da luta social continental. Mesmo quando não são tão sólidas e extensas como queríamos, essas conexões existem, oferecendo-nos uma possibilidade que é imperdoável deixar passar.

Concordo com a afirmação de que o anarquismo será ação social ou não será. Postergar ou subordinar essa ação em favor dos atos exemplarizantes, da profecia e do ensaio de “dias de fúria”, de um “estilo de vida livre” pessoal que chega a ser pretexto contra a solidariedade, de ilhar-se em um anarquismo para o cultivo intelectual ou o gozo estético, condenaria nosso ideal à esterilidade e inércia.

 

Publicado originalmente como
“Sobre el Anarquismo en Latinoamérica Hoy”
em Tierra y Libertad, nº 289-290, Madrid, agosto-setembro de 2012
Traduzido por Cami Álvares Santos