Rafael Uzcátegui
A ausência de espaços de intercâmbio, assim como de mecanismos de discussão entre anarquistas da América Latina, precisa que qualquer tópico a ser resolvido seja precedido de um esclarecimento a respeito do lugar de onde a reflexão se origina. A falta de continuidade orgânica, ou movimentista, se preferir, nos obriga a um eterno retorno cíclico, onde não cabem subentendidos se o que se deseja é um diálogo real e um confronto de argumentos.
Este artigo deseja questionar o uso do vocábulo “poder popular” entre alguns círculos libertários, sem pretender esgotar uma discussão que ainda, salvo alguns escritos dispersos aqui e ali, não recebeu a necessária rigorosidade, que tampouco será realizada aqui devido ao curto espaço. Nosso convite à deliberação deve começar com alguns esclarecimentos. Quem vem promovendo, em alguns países com mais visibilidade que em outros, a utilização desse termo para sintetizar uma suposta proposta anarquista adequada aos novos tempos o faz para se diferenciar de outros e outras libertárias que combatem como antagônicas, curiosamente com muito mais ênfase que o resto da esquerda autoritária. Conforme, este anarquismo de poder popular enfrenta outro anarquismo que qualifica, seguindo Murray Bookchin, como “de estilo de vida”, e que caracteriza como “dogmático”, “elitista”, “fechado no passado” e centrado, majoritariamente, no denominado “insurrecionalismo”. Não pretendemos negar que algumas tendências no continente possam aglutinar algumas ou todas as características anteriores. Contudo, repudiamos com veemência que toda a variedade das expressões do movimento libertário, do Rio Grande à Patagônia, possa ser simplificada única e exclusivamente neste maniqueísmo: o “anarquismo organizado” – como se autoclassificam os cultivadores do poder popular – versus o “insurrecionalismo”.
Em troca, o anarquismo com o qual nos identificamos é aquele que – reconhecendo a importância da participação em grupos de afinidade especificamente libertários – entende que os valores anarquistas só poderão ser desenvolvidos em um espaço dinâmico de movimentos sociais, horizontais e autônomos, em conflitos concretos e reais para melhorar aqui e agora as condições de vida dos oprimidos e oprimidas de qualquer sinal. E a intervenção ácrata, junto a pessoas de outro pensamento, não esfuma nossa identidade como anarquistas, pelo contrário, a potencializa. Porque os valores – e não os rótulos – que nosso movimento defendeu ao longo da história aspiram ser vividos por qualquer pessoa com aspirações de justiça social e liberdade, e não somente por um grupo reduzido de anarquistas convencidos.
O velho fantasma da ditadura do proletariado
A proposta anterior não é a melhor nem a única que complica a interessada polarização construída pelos promotores rubro-negros do poder popular: de um lado, eles construindo organização ao lado do povo em uma inédita e heterodoxa interpretação do anarquismo; do outro, os anarquistas dogmáticos de café e biblioteca, fechados em guetos distantes das massas, cujas iniciativas aventureiras somente alimentam a reação. A caricaturização da discussão nestes termos só esconde a própria superficialidade das propostas dos “anarquistas organizados”. Vamos por partes.
O uso do termo “poder popular” é uma moda em tempos de suposta virada do continente em direção à esquerda por parte de governos, entre aspas, “progressistas”. No geral, boa parte da esquerda propõe a criação do poder popular sem declarar que coisa se está definindo por esse termo. Em nossos campos a confusão é ainda maior, pois se nomeia coisas corretas usando o termo errado. Antes dizíamos que como anarquistas pouco nos importam os rótulos, entretanto, esta noção, como explicaremos, necessariamente adota um significado que, precisamente, termina por hipotecar em direção ao nada os valores que nos definem como antiautoritários. Citemos o conceito que o Centro de Investigación Libertária y Educación Popular (CILEP), da Colômbia, utiliza: “O poder popular é sobretudo potência, porque antecipa o mundo futuro, porque no presente manifesta o que está por vir. Este último é muito importante, já que de nada serve construir uma sociedade livre utilizando meios opressores, hierárquicos e discriminadores” (http://www.anarkismo.net/article/12227). Como poderá ser constatado, a definição não traz nada novo que anarquistas já não tenham dito no último século, contudo está sendo descrito aquilo que antes era expresso como “autogestão”, “ação direta”, “coletivismo” ou qualquer conceito afim e específico do discurso libertário. A única razão para utilizar um termo alheio como próprio é estender pontes e estabelecer alianças com aquelas iniciativas que realizam um uso diferente da expressão “poder popular”. O contrabando linguístico é justificado em nome de um suposto “antidogmatismo”, porém um de seus objetivos é normalizar entre anarquistas a utilização de conceitos e referenciais provenientes das organizações partidárias de esquerda. Não é casual que o artigo da CILEP comece com uma citação de Miguel Enríquez, fundador do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) chileno.
Em seu precedente, podemos constatar que as adjetivações não são fortuitas nem inocentes. O termo “poder popular” é uma atualização do que os autoritários definiam, antes da queda do Muro de Berlim, como “ditadura do proletariado”. O dicionário russo de filosofia a definia como “resultado da liquidação do regime capitalista e da destruição da máquina do Estado burguês (…) O proletariado faz uso de seu poder para esmagar a resistência dos exploradores, consolidar a vitória da revolução, conjurar a tempo as tentativas de restaurar o poder da burguesia e defender-se contra as ações agressoras da reação internacional”. Também poderíamos ter feito esta explicação, contudo se os anarquistas que nos precederam enfrentaram alguma coisa foi precisamente a ditadura do proletariado. E poderíamos resgatar boa parte dos argumentos utilizados para debater hoje com os entusiastas do poder popular “libertário”. Em “Estatismo e Anarquia”, por exemplo, Bakunin afirmava: “De qualquer ponto de vista que se encare este problema, chega-se sempre ao mesmo triste resultado, à direção da imensa maioria das massas populares por uma minoria privilegiada. Mas essa minoria, dizem os marxistas, será composta por trabalhadores. Sim, talvez tenham sido trabalhadores, mas tão logo se converterem em chefes ou representantes do povo deixarão de ser operários e contemplarão o povo laborioso a partir da altura governamental; não mais representarão o povo, mas a si mesmos e suas pretensões ao governo do povo”.
Mais recentemente, o conceito de poder popular tentou ser desenvolvido durante a truncada experiência de governo de Salvador Allende, no Chile, e posteriormente como proposta de governo de iniciativas de esquerda, como, por exemplo, a Venezuela, de Hugo Chávez, onde todas as oficinas e ministérios públicos foram refundados como “do poder popular”.
Os dois problemas do poder popular
Assim como ontem a ditadura do proletariado tinha duas objeções – Qual ditadura? e Que proletariado? –, o poder popular encerra, do ponto de partida, um par de problemas – De que poder estamos falando?, por um lado, e Quem define o que é poder popular?, pelo outro.
Poder é uma palavra polissêmica, de diferentes significados. Em primeiro lugar, é uma faculdade, uma capacidade de fazer, uma habilidade para fazer coisas, o denominado “poder-fazer”. Por outro, expressa uma relação de domínio, um “poder-sobre”. John Holloway explica a passada de um estágio a outro pela fratura do fluxo social do fazer, o qual o transforma em seu oposto, o poder-sobre. Quem reinvidica o poder popular a partir do anarquismo propõe a promoção infinita do poder-fazer sem esclarecer como se evita que ele se transforme em poder-sobre. O marxista irlandês tampouco pôde explicar, portanto escolheu o caminho anarquista: propõe mudar o mundo sem tomar o poder. E isto foi assim porque poder é verbo e advérbio. Como proposta política, o uso do termo poder, como advérbio, tem um único significado: relação de autoridade de algumas pessoas sobre outras. E se ontem o uso da palavra “ditadura” só podia ter a consequência que teve, hoje o acúmulo do poder, tenha o adjetivo que tiver, só terá uma rota: a opressão.
Em segundo lugar, temos a própria definição do “popular”. O “povo” é uma definição vaga e imprecisa que pode significar qualquer coisa. O que é popular e o que não é? Suponhamos que seja o nascer dentro das classes mais excluídas da sociedade. Esta particularidade de origem é mantida por toda a vida, independentemente das funções que a pessoa ocupa e das ações que realiza? Inácio Lula da Silva, de origem operária, é um presidente “popular”? Ou pelo contrário, popular é sinônimo de aceitação pelas maiorias? Por último, esta mitificação do “popular” como contrário ao elitista mitifica seus componentes como bons por natureza. E qualquer pessoa que esteve em um bairro carente ou em uma favela sabe que sua composição é tão diversa quanto a do resto da sociedade: indivíduos potencialmente revolucionários que convivem com outros claramente conservadores. Esta falsa confrontação, a do “poder popular” versus o “poder das elites”, esconde a multiplicidade de relações de domínio que Foucault descreve bem em “Microfísica do Poder”.
Crise da esquerda, crise do anarquismo
Não é segredo que a teoria e a prática revolucionária encontra-se em crise no mundo inteiro. O anarquismo não escapa da confusão e da ausência de propostas novas. O curioso é que algumas organizações libertárias apresentem como novidades estratégias que o socialismo autoritário demonstrou, durante diferentes momentos da história, como contrárias à liberdade e à justiça social. A promoção do poder popular da parte de iniciativas anarquistas as coloca atrás de organizações cuja tática é o acúmulo de forças para a tomada do poder político.
Acreditamos que a maior parte dos companheiros e das companheiras que apostaram nesta estratégia se encontra confusa, sem referenciais claros e ignorantes não apenas da trajetória das lutas revolucionárias no mundo inteiro. Contudo, é claro que em alguns empreendimentos concretos há uma intenção de implodir o anarquismo a partir de dentro, por parte de partidos políticos da esquerda autoritária que, perante o descrédito por seus magros resultados históricos, necessitam ser rejuvenescidos, adotando uma fachada pseudolibertária. Uma coisa é ser a cauda dos partidos de esquerda, por mais “radicais” que se vendam, e outra muito diferente é ser parte das tensões e dos enfrentamentos sociais com os poderes estabelecidos.
É uma tristeza que as contribuições mais interessantes no fortalecimento de conflitos e na promoção das lutas populares na região venham dos setores autodenominados autonomistas (Holloway, Colectivo Situaciones etc.), que precisamente incorporaram valores anarquistas a suas propostas, afirmando que este resultado é parte da “evolução” de seu marxismo. Todavia, esta e qualquer crise também é uma oportunidade. Mas para superar este estancamento, ou o claro retrocesso ao qual os deslumbrados pelo poder popular nos convidam, deve-se experimentar apaixonadamente na vida cotidiana e decifrar os enigmas e desafios do nosso tempo. Aqui coincidimos com as palavras do nosso querido e lembrado Daniel Barret: “uma criação social libertária e socialista não pode ser concebida como o resultado espontâneo de uma nebulosa legalidade histórica, nem como um desígnio caudilhista, nem como uma operação de engenharia sob a forma de planejamento central, nem como uma casualidade, nem como um advento mágico: uma sociedade libertária e socialista só pode ser o fruto de uma profunda decisão autônoma e de uma interminável sucessão de lutas e de gestos que se formam nas dobras da consciência coletiva”.
Publicado originalmente como
“Grupos Libertarios y Poder Popular:
Dinamitando el Anarquismo desde Adentro”
em Libertad!, nº 57, Buenos Aires, janeiro de 2010
Traduzido por Cami Álvares Santos