Resposta à declaração da FAU frente à morte de Chávez
Coletivo Editor de El Libertario
Datada do dia seguinte ao falecimento do presidente venezuelano, foi divulgada a declaração intitulada La Muerte de Hugo Chávez: Su Repercusión en América Latina y el Mundo[1], publicada e mantida (até o momento em que estas linhas são escritas) em lugar de destaque na página virtual da Federación Anarquista Uruguaya – FAU, grupo que assina como responsável por este texto. Ali, são propostas diversas considerações sobre a personalidade do falecido, sobre seu papel histórico na Venezuela e na América Latina, sobre o governo e o movimento político que encabeçou, assinalando uma avaliação e algumas conclusões em relação às quais nos pareceu obrigatório expressar nossa réplica, pois essa declaração, baseada em estimativas erradas e/ou desinformadas sobre Chávez e a Venezuela, aponta um juízo positivo, não somente distante do que caberia ser dito a partir do anarquismo, mas além disso sugerindo um curso de ação (o assim chamado “apoio crítico”) frente a essa classe de figuras e seus governos que, conforme entendemos, desnaturaliza totalmente o ideal e a prática ácrata, que por essa via termina por se converter em paródia do marxismo, especialmente quanto a limitações e falhas.
Tropeçar na mesma pedra 50 anos depois
Repete-se um acontecimento similar ao que na década de 1960 levou o “apoio crítico” brindado pela FAU ao castrismo em Cuba, que teve resultados tão negativos para a própria FAU, para o anarquismo latino-americano em geral e para o anarquismo cubano em particular. Naquele momento, e de acordo com Daniel Barret em El Movimiento Anarquista Uruguayo em los Tiempos de Cólera[2], a Federación Anarquista Uruguaya (F.A.U.), fundada em 1956 e reconhecida como expressão importante do movimento socialista libertário nesta parte do mundo, terminou convertendo-se na “FAU sem pontos”, onde as definições anarquistas – assim como os pontos da sigla – foram se perdendo no esforço de repetir discursos, ações e erros do marxismo latino-americano naqueles tempos.
Não é o caso de analisar aqui o que terminou significando aquela postura da FAU, mas para quem deseja informação e análise a respeito há, além do ensaio mencionado, outro texto de Barret: Cuba y la Revolución Latinoamericana, em particular a seção Cuba, el Socialismo y la Libertad[3]. O tema também é discutido no livro El Anarquismo en Cuba de Frank Fernández[4]; em Los “Extravíos” Teórico-Ideológicos del Pensamiento Ácrata Contemporáneo, de Gustavo Rodriguez[5]; no artigo de Nelson Méndez, Anarquismo en América Latina: Consideraciones en Torno a Su Historia, Rasgos y Perspectivas[6]; e no panfleto (em inglês, com vários autores) The Uruguayan Anarchist Federation (FAU): Crisis, Armed Struggle and Dictatorship[7].
Mais adiante, nos anos 1980, quando a organização uruguaia começa a se reconstruir depois da feroz repressão da ditadura militar, parecia que essas visões ambíguas ficariam para trás; mas quando chega o século XXI, vemos como este e outros grupos de direção plataformista/especifista no anarquismo continental se posicionam com um estranho silêncio e neutralidade frente a governos “de esquerda anti-imperialista” como a ditadura cubana de longa data e a tão recente “revolução bolivariana”, ainda que no segundo caso e com o decorrer dos anos a neutralidade tenha dado lugar a diversas expressões de simpatia ou até respaldo, algumas tentando sem êxito ser mais sutis, como no documento da FAU e no documento com sermão similar que Manu García escreve do Chile[8], outras em adesão pesarosa e delirante (veja a proclamação da Organización Comunista Libertaria de Chile[9]). O resultado é que, no final das contas, terminamos respirando um ar de familiaridade deplorável entre enfoques endossados pela FAU com meio século de diferença, hoje sobre a Venezuela e outrora perante Cuba, como se a história e a experiência valessem muito pouco ou nada.
Mito e discrição da Banda Oriental
É imprescindível reproduzir letra por letra o primeiro parágrafo da declaração da FAU, visto que nele se encontra de modo patente a apreciação que seus redatores possuem sobre Chávez, sua atuação como governante e o legado que deixa:
Uma forte comoção passou pelo mundo, tendo morrido um governante e militante de características singulares. Bastante controverso, polêmico e polemista, de afirmações políticas vigorosas, criativo, incansável em seu discurso e propostas, de carisma potente. Trouxe à cena social política o nome socialismo quando poucos ou quase ninguém, ao nível de governos em uma estrutura capitalista, fazia menção a tal nome, muito menos depois da queda do chamado socialismo real. Com Marx e Deus em sua boca, lançou um original socialismo do século XXI. Todavia, discute-se que conteúdo tem tal conceito. O modelo neoliberal então estava, como segue estando, no trono da infâmia. Seu fazer político o marcou com um selo muito pessoal. Governante paternalista, personalista, autoritário foram as definições mais frequentes que foram usadas para suas ações. Criou mística e esperança em grande parte de seu povo e também em parte de outros povos da América Latina. Com energia gritou forte, com certas contradições, seu anti-imperialismo, a respeito da Pátria Grande latino-americana, da Independência, sobre Poder Popular criado fundamentalmente a partir de cima. A partir de seu governo, teceu relações políticas com vários governos do mundo, com bastante de sua impressão. Tornou efetiva uma política solidária com países latino-americanos e inclusive além desta área: venda de petróleo em condições vantajosas, e outras ajudas, para servir de exemplo para a recuperaçãceyo de indústrias conduzidas por operários, como no nosso país. Da mesma forma, propôs e perseverou na construção de novos organismos em toda a América Latina, com os quais se alcançaria mais independência, que traria melhorias importantes para o nível de vida do povo.
Frente a essa descrição, nossa reação inicial foi de incredulidade. É de se esperarde uma organização que alega estar dentro do anarquismo semelhante descrição indulgente do cabeça de um Estado capitalista, ainda mais de profissão militar, que sempre se apresentou (por si mesmo e por seus seguidores) como uma espécie de líder com sabedoria absoluta e intenções positivas por definição, ao qual só cabia obedecer? Sem dúvida, há ali algumas qualificações críticas ao personagem, mas quem redige tem o cuidado de não apresentá-las como opinião da FAU, mas atribuindo-as a vozes indeterminadas e que, presume-se, seriam de adversários maliciosos de Chávez. Ocorre o contrário com a adjetivação positiva, que venera o defunto extensamente e sem nenhuma das cautelas de redação, desculpas de simpatizante ou receios ideológicos que há para registrar algo contrário. O certo é que para qualquer pessoa que lê esse parágrafo fica claro o tom geral de louvor e que Chávez tem um lugar assegurado no panteão revolucionário continental para aqueles que o assinam, pois teria sido um magno paladino responsável pela ressurreição do socialismo, voz do anti-imperialismo e rosto das esperanças latino-americanas.
Esmiuçando o panegírico
Examinemos as afirmações em torno das quais o documento da FAU traça essa visão laudatória, contidas nas palavras citadas e em outras partes do texto, que na nossa visão são insustentáveis e totalmente refutáveis ao serem contrastadas com fatos e processos reais.
A FAU começa com uma lista do que exaltam como “características singulares” do personagem: uma delas seria sua condição de “polemista”, o que certamente jamais vimos na Venezuela, onde este incansável monologuista nunca aceitou participar de debates frente aos seus oponentes em eleições presidenciais (uma de suas desculpas foi feita com a frase “águia não caça moscas”); outro traço é a capacidade “criativa”, da qual logo nos ocuparemos ao descrever o monstro mais notório do qual seria autor: “o socialismo do século XXI”.
Além disso, diz-se de Cháves que “criou mística e esperança em grande parte de seu povo”. O que fomentou foi a demagogia, a ilusão messiânica e o clientelismo sustentado no auge do lucro petrolífero, algo que, a propósito, não é novo na história nacional, pois já no passado meios parecidos sustentaram na maior parte do século XX o respaldo popular recebido pela Acción Democrática, o partido político cujos caudilhos mais significativos foram Rómulo Betancourt e Carlos Andrés Pérez. A diferença com o chavismo é que o esgotado discurso do populismo social-democrata da A.D. foi substituído por verborreia com tons marxistoides e “anti-imperialistas”, mas mantendo tantas semelhanças a respeito da linguagem do velho partido, das práticas que lhe caracterizaram no exercício do poder, assim como das condutas pessoais de seus dirigentes e de muitos de seus militantes, que já é lugar comum na Venezuela identificá-los como “adecos de boina vermelha”, o que não é de forma alguma um elogio.
Há uma insistência reiterada no documento, condensada na seguinte frase descritivado Comandante-Presidente: “Com energia gritou forte, com certas contradições, seu anti-imperialismo”. Aparentemente, seriam menores – e nem sequer vale a pena descrever – essas “certas contradições”, pois para a FAU o deslumbrante é o suposto rugido anti-imperialista. Mas acontece que há evidência assombrosa de que a pirotecnia verbal de Chávez foi somente cobertura para dissimular uma vergonhosa cessão do patrimônio do país ao capital transnacional, que é o maior suporte e beneficiário desse imperialismo contra o qual vociferou tanto. Exemplos sobram na área de hidrocarbonetos, fundamental na Venezuela[10]: as empresas mistas, onde o Estado – que tinha controle total desses recursos desde 1976 – cede a seus sócios estrangeiros a propriedade de até 40 % das jazidas petrolíferas e 80 % do gás[11]; o tratamento amoroso e o excelente rendimento econômico do qual corporações ianques como Chevron, Halliburton e Schlumberger desfrutaram; os acordos que amarram volumes crescentes da futura produção venezuelana ao pagamento de dívidas contraídas com a China em termos de usura; ou as enormes distribuições de bens com que a petrolífera estatal PDVSA agracia seus competidores ao comprar-lhes óleo cru para suas refinarias do exterior e gasolina para o mercado nacional.
Mas tampouco faltam provas em outras áreas: os E.U.A. como principal exportador e importador no mercado venezuelano; o negócio mais que perfeito feito pelos bancos especuladores transnacionais com os títulos de dívida emitidos pelo governo chavista; a admissão de tratados contra a dupla tributação, que são uma delícia para o capital forasteiro, onde não somente continuam vigentes 17 convênios internacionais que vinham do anterior governo de Caldera, mas foram assinados mais 19 tratados; a submissa entrega da prospecção mineira em todo o território venezuelano à empresa chinesa Citic Group; as macro-compras de armamentos para capitalistas espanhóis e russos[12]; os mais que lucrativos contratos em favor de companhias como as brasileiras Odebrecht e Andrade Gutiérrez ou a ibérica Essentium; a crescente presença de polvos transnacionais para controlar áreas tão rentáveis e em expansão como telecomunicações (DirecTV, Digitel, Movistar) ou seguros (Liberty Mutual, Mapfre, Zurich); e assim poderia seguir-se com uma longa lista dessas “certas contradições” que a FAU com muito tato prefere desestimar ou silenciar, mesmo sendo fatos de tamanho peso que desnudam como pura hipocrisia o grito anti-imperialista.
Para mais detalhes sobre estes e outros compromissos entreguistas passados, presentes e futuros da “revolução bolivariana” com o capital transnacional, temos divulgado no El Libertario um mapa intitulado Venezuela, Transnacionales, Militarismo y Resistencias, onde são representados e descritos tanto muitos desses compromissos como as lutas de resistência que têm enfrentado. Pode ser visto em nosso número 63 (maio-junho de 2011) e em www.nodo50.org/ellibertario. Também deve-se consultar o disponível nas páginas informativas venezuelanas http://periodicoellibertario.blogspot.com, www.soberania.org e www.laclase.info.
Governar ao gosto da FAU (e de certos autócratas)
“A partir de seu governo, teceu relações políticas com vários governos do mundo, com bastante de sua impressão.” Que maneira elegante e comedida de se referir ao tratamento de Chávez para com tantas autoridades estatais inapresentáveis, que alegaram ser anti-imperialistas por romper o isolamento internacional e/ou por necessidade de petrodólares! Citemos alguns desses amigos íntimos que foram se aproximando do agora defunto: o governo teocrático do Irã, a sangrenta família Al Assad, da Síria, uma ampla variedade de ditadores africanos (por exemplo: Mugabe, de Zimbábue, Jammeh, da Gâmbia, Obiang, da Guiné Equatorial, ou o finado Gaddaffi), o grotesco Lukaschenko, de Belarus, o chefe mafioso Putin, da Rússia, e – como esquecê-los! – os irmãos Castro, de Cuba. No demais, neste ponto e no referido nas linhas anteriores, a FAU parece ver o imperialismo somente como o imperialismo ianque, e assim termina por acreditar que tudo o que se diga ou se apresente contra os gringos é um progresso, ainda que seja à custa de silenciar – por pretensas razões táticas – os abusos, a opressão e a exploração que outros imperialismos e outras formas de domínio brutal perpetram.
De modo explícito nesse primeiro parágrafo repetidamente citado, e sendo reiterado em outras partes do do documento, é ressaltada a importância histórica de Chávez por conta de seu emprego demagógico e trapaceiro de termos como socialismo, anti-imperialismo ou poder popular. Sendo assim, essa desculpa vale também para outros usuários dessas vozes como a ditadura dos Castro em Cuba, o despotismo hereditário-militarista que reina na Coreia do Norte, ou o capitalismo selvagem que hoje impera na China ou no Vietnã? Isso para não falar de até onde chegou a gestão do finado quanto à construção concreta do socialismo na Venezuela, a respeito do qual o economista Víctos Álvarez, que exerceu um alto cargo e é um notório simpatizante chavista, resume os resultados nos dados estatísticos – claros em sentido, mesmo que confusos em aritmética – que contribuiu em declaração ao diário Últimas Noticias de 7/6/2013: “O capitalismo [privado] na Venezuela aumentou de 64,7 % do PIB em 1998 para 70 % em 2009, enquanto o setor público caiu de 35 % para 30 %. ‘A economia social não chega aos 2 %’”. E se, como a propaganda oficial vocifera, pretende-se a condição de socialista por conta de êxitos originais e épicos no bem-estar coletivo, a miragem se desfaz ao examinar com consciência e com olhar crítico os resultados proclamados, como verifica Rafael Uzcátegui na segunda parte de seu livro Venezuela: La Revolución como Espetáculo[14], obra cujo enfoque documentado é continuado em diversos artigos de publicação posterior no El Libertario, sendo o exemplo mais recente Estadísticas, Falsificación y Académicos “Progres”, incluso no número 69, de abril-maio de 2013.
Em outro âmbito da ação da ação governamental chavista, a compra descarada do apoio de caciques políticos de nossa área (lembrar da maleta de dólares para a campanha eleitoral de Cristina K., as doações natalinas para o turvo Ortega, da Nicarágua, ou a entrega de guerrilheiros ao governo colombiano) é dissimulada dentro do que o documento da FAU batiza como “política solidária com países latino-americanos”, sugerindo que foram os povos, e não o respectivo Estado e Capital – privado ou burocrático –, os beneficiários principais e imediatos dos vínculos com a Venezuela. É dado como exemplo dessa solidariedade com o Uruguai a provisão de recursos para a “recuperação de indústrias conduzidas por operários”, desviando-se do fato de que a grande fatia dos intercâmbios entre os dois países correspondeu à burguesia uruguaia e aos boliburgueses bolivarianos (por exemplo, na importação de carne para a Venezuela e na fraude das casas pré-fabricadas[15]). Além disso, parece que a FAU desconhece que esse apoio à criação de postos de trabalho industrial no exterior é feito ao mesmo tempo em que a indústria venezuelana vive uma situação de crise, onde aqueles capitalistas que enfrentam o governo vão abandonado essa atividade (em muitos casos, fechando fábricas e saindo fora), enquanto a frutífera boliburguesia (que engorda em corrupção mediante finanças, serviços e comércio importador) prefere ramos de rentabilidade mais imediata e que impliquem em atividades menos intensas para enriquecer. A FAU também teria que recordar do acontecido na Venezuela com a “recuperação de indústrias conduzidas por operários”, um fracasso ressonante da burocracia encarregada, sobre o qual convidamos a ver o descrito na versão impressa de El Libertario, nas páginas informativas venezuelanas anteriormente mencionadas, e nas seções El Cooperativismo Bolivariano e Las “Fábricas Tomadas” Venezolanas, do livro de Uzcátegui.
Não é preciso ser especialista em relações internacionais para se dar conta de que semelhantes Estados e governos se afligem ao perder um amigo tão conveniente aos seus interesses de poder, logo os alardes lutuosos que empregaram já eram de se imaginar; mas o que é inesperado é que uma federação anarquista apresente isso como indício a favor do falecido. Quanto à “dor do povo” como símbolo do papel positivo de Chávez, lembre-se das cenas na Coreia do Norte após a morte de Kim Il Sung, na velha URSS, com Stalin, na China, com Mao, no Egito, com Nasser, na Argentina, com Eva e Juan Domingo Perón, para citar somente alguns déspotas estatais cujas exéquias foram caracterizadas pela presença e pelo choro de multidões. É de se supor que para a FAU seriam válidos argumentos parecidos de admiração a esses ou a outros governantes autoritários, marxistas e/ou populistas, acabam morrendo com as rédeas do poder em suas mãos e uma apoteose fúnebre massiva e lacrimogênia.
O deferente e prolixo parágrafo de abertura se encerra nos ensinando o quanto que o agora denominado Comandante Infinito “(…) propôs e perseverou na construção de novos organismos em toda a América Latina, com os quais se alcançaria mais independência que traria melhorias importantes para o nível de vida do povo”. Isso soaria muito convincente e até mesmo enternecedor, se não lembrássemos que a essência desses “novos organismos” é manifestada na iniciativa IIRSA (Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional da América do Sul) e no Plano Centro-Americano (antes Plano Puebla-Panamá), dois convênios onde, com descaramento absoluto, os governos aderentes – entre eles, o da “revolução bolivariana” – se comprometem a fazer o que for necessário para fortalecer o modelo de capitalismo extrativista que as transnacionais e os poderes imperiais promovem neste continente.
Fundamentos teóricos do anarcoestatismo
A vocação do texto em levantar mitos não se refere somente ao protagonista, mas também ao seu cenário. Desse modo, mais à frente há outro parágrafo que também vale citar integralmente:
Nestes anos, especialmente naqueles sob o comando da Venezuela, foram sendo desenvolvidas uma série de atividades populares. Isto foi tomando formas organizativas: coletivos, conselhos comunais, comunas etc. Isto, em seu conjunto, foi denominado Poder Popular. A burocracia partidária foi crescendo em ingerência e cada vez mais deslocando os autênticos representantes destas formações populares.
Isto não é nada mais que armar uma fábula sobre o modo como os conselhos comunais e outras instâncias de controle social parecidas foram concebidas e impostas a partir do poder estatal. Pinta-se ali a imagem mítica de como, a partir da ascensão de Chávez à presidência, um poder dos oprimidos, que surgiu autonomamente e de algum modo perdura apesar da intenção burocrática ulterior em submetê-lo, foi se forjando na Venezuela a partir da base. O que é certo é que padecemos da montagem de um aparato criado e sempre regulado pelo Estado, para cuja imposição não houve dúvida em abater ou maltratar as dignas e combativas organizações populares de existência prévia, e onde o “Poder Popular” é basicamente um nome calcado a partir da estrutura governamental cubana. Sobre os detalhes deste processo de construção a partir de cima e do controle burocrático dos supostos órgãos de poder popular, ver o publicado em diversos números de El Libertario, no livro de Uzcátegui e nos trabalhos de pesquisa de María del Pilar García disponíveis na seção “textos” de nossa página virtual: www.nodo50.org/ellibertario.
Como se a historieta do impulso que a organização popular autônoma experimentou com a “revolução bolivariana” não fosse suficiente, o documento recorda com beneplácito a ocasião em que o Amado Líder citou Kropotkin publicamente, o que aparentemente dá crédito a uma afinidade ou simpatia presidencial a algumas concepções anarquistas. Com esse pretexto, quer ignorar que na prática concreta e cotidiana de seu governo houve uma infinidade de fatos evidenciando que Chávez era o principal responsável e agente dos traços burocráticos, centralizadores e autoritário-militaristas de um regime que foi o total oposto das aspirações do socialismo libertário. Exemplo disso é como foram tratadas as organizações sindicais total ou parcialmente independentes do controle oficial, para cujo assédio e tentativas de anulamento sempre houve o aval e a inspiração do Comandante, de acordo com a evidência compilada no informe Trabajo y Sindicalismo en Venezuela, também disponível na página anteriormente citada. Esta fustigação permanente contra sindicalistas e outros ativistas autônomos tornou possível o clima no qual tem ocorrido assassinatos de lutadores sociais como Richard Gallardo, Luis Hernández, Carlos Requena, Argenis Vásquez, Jerry Díaz, Joe Castillo, Mijail Martínez e Sabino Romero, para citar somente os casos de maior impacto; crimes perante os quais a resposta ambígua do governo chavista e sua incapacidade para lidar com os responsáveis parecem demais com tolerância ou cumplicidade.
Quanto a citar personagens para dar legitimidade a alguma posição, lembre-se do oportunismo reiterado do Comandante-Presidente quanto a referências teóricas, declarando-se marxista, cristão, bolivariano, maoísta, indigenista, trotskista, gramsciano, castrista, peronista, guevarista etc., em um emaranhado ideológico descomunal que torna totalmente incoerente seu socialismo do século XXI, a criação atribuída ao personagem que a FAU qualificou anteriormente como ideia original, sobre a qual “discute-se que conteúdo tem tal conceito”. De outra forma, frente a essa referência positiva a Kropotkin, poderia igualmente ser trazido à discussão as repetidas exortações de Chávez ou de seus criados doutrinários contra o anarquismo, seus princípios e práticas básicas. Sobre isto, remeteremos a três artigos de El Libertario: Un Cierto Panfleto Bolivariano, no número 29, do ano de 2002; El Socialismo Chavista, número 42, 2005; e Chávez y el Anarquismo, número 53, 2008.
Por que obstinar-se com pedras, tropeços e mitos autoritários?
A seção final do texto da FAU, subintitulada Una Ideología para el Poder Popular, expõe um sumário de concepções básicas do atual plataformismo/especifismo na América Latina, que à primeira vista parece desconectado com o título e o aparente objetivo central que o documento assoma em seu início. Visto que o cerne desta réplica à FAU é discutir sua visão sobre Hugo Chávez e a Venezuela, não nos ocuparemos aqui da análise crítica que essas concepções merecem, avaliação que de outra forma já foi bem desenvolvida – em termos em que compartilhamos pontos comuns – por Patrick Rossineri, em “Entre a Plataforma e o Partido: As Tendências Autoritárias e o Anarquismo”[17], e em La Aceptación del Concepto de Poder como Negación del Anarquismo[18]; por Daniel Barret, em seu livro Los Sediciosos Despertares de la Anarquía[19]e em El Movimiento Anarquista Uruguayo em los Tiempos de Cólera; por Gustavo Rodríguez, em Los “Extravíos” Teórico-Ideológicos del Pensamiento Ácrata Contemporáneo; e por Rafael Uzcátegui, em Grupos Libertarios y Poder Popular: Dinamitando el Anarquismo desde Dentro[20].
Mas se essa seção final está ali deve ser por algum motivo, e considerando o que comentamos, estimamos que para os redatores era necessário que constasse essa profissão de fé em suas propostas teóricas como acompanhamento à descrição prévia do tanto de positivo que cabe extrair da experiência de Hugo Chávez e sua “revolução bolivariana”, pois dessa classe de misturas entre o anarquismo (claro que da linha plataformista/especifista) e outras “experiências de luta” – como a inspirada pelo Comandante –, surgiráem nosso continente a “ideologia de ruptura”, que, é claro, não poderá ser outra que “uma ideologia para o poder popular”. Então, é muito provável que esse empenho em convencer-se, e nos convencer, de que o que ocorreu na Venezuela de 1999 a 2013, sob a ilustre condução do mencionado, foi uma experiência de luta positiva que enriqueceu a canteira ideológica do continente tenha mais a ver com a aspiração de fazer a realidade calçar a fôrma de esquemas prévios que com a própria realidade, pois se não se demonstra que as gororobas autoritárias-burocráticas como o chavismo de agora – e o castrismo de outrora – são parte necessária do rumo à revolução social, de que modo se justificaria o curso político quase frente-populista da FAU e de seus homólogos nestas terras?
É por isso esse empenho em se negar a reconhecer os múltiplos fatos que desmontam as pretensões de apresentar o chavismo como revolucionário, socialista, anti-imperialista e tolerante ou mesmo afim com o anarquismo. Tal obstinação de recusar o evidente não é exclusiva da FAU, sendo compartilhada por grupos análogos, que sistematicamente se calam ou se cegam frente a qualquer visão crítica sobre a atual situação venezuelana proveniente do anarquismo e de outras vozes da esquerda radical (sem esquecer que tampouco costumam opinar algo que questione o “governo irmão” dos Castro), sendo um bom exemplo dessa atitude a eloquente ausência de documentos com essas visões críticas nas páginas virtuais plataformistas/especifistas da América Latina, enquanto dão cabimento e promoção a curiosos “anarcos” cuja mensagem está centrada na propaganda aos supostos êxitos alcançados ou que estão por vir à sombra do Estado venezuelano, em profetizar as pragas que choveriam sobre o país se faltasse o governo chavista, e em caluniar o anarquismo que não recebe subvenções nem consignas oficiais.
Se a FAU e similares são consistentes em seguir sustentando essa valorização positiva de Chávez e de seu legado estampada no documento comentado, o mínimo que se pode esperar é que desmintam a certeza dos fatos e processos que apresentamos como argumentos para refutar a pretendida condição progressista desse caudilho e de seu governo, já que sob sua tutela não ocorreu nada essencialmente diferente do que aqueles de baixo sofrem com qualquer outro dos atuais Estados latino-americanos. De fato, um governante como ele foi mais que apropriado para os interesses do poder transnacional neste continente hoje, pois se ajustou totalmente ao modelo de capitalismo extrativista e de globalização econômica. Fechar os olhos frente à evidência demonstrativa de como esta ou qualquer “revolução” autoritária termina sendo a substituição de uma opressão por outra – geralmente pior –, voltando a se embelezar com promessas grandiloquentes e palavras inflamadas, é repetir torpemente a experiência catastrófica da década de 1960.
Notas
[1] http://federacionanarquistauruguaya.com.uy/2013/03/07/sobre-venezuela-y-ante-la-muerte-de-hugo-chavez-seguir-creando-un-pueblo-fuerte/.
[2] http://www.nodo50.org/ellibertario/danielbarret.html.
[3] Também em http://www.nodo50.org/ellibertario/danielbarret.html.
[4] Editado pela Fundación Anselmo Lorenzo, Madrid, 2001. Também en http://issuu.com/ellibertario/docs/elanarquismoencuba.
[5] http://www.nodo50.org/ellibertario/descargas/Algunasreflexionessobreelextravio.doc.
[6] http://estudios.cnt.es/estudios-2/.
[7] http://libcom.org/history/federacion-anarquista-uruguaya-fau-crisis-armed-struggle-dictatorship-1967-85.
[8] http://www.anarkismo.net/article/25037.
[9] http://fel-chile.org/?p=370.
[10] Informação detalhada a respeito no dossier Petróleo y Venezuela: Voces Alternativas, acessível na seção de textos de www.nodo50.org/ellibertario.
[11] Há explicações e análises esclarecedoras sobre este assunto no livro de Pablo Hernández Parra, El Verdadero Golpe de PDVSA, Maracaibo, 2006. Boa parte do livro, assim como outros materiais do mesmo autor sobre o tema petroleiro venezuelano estão disponíveis em http://www.soberania.org/pablo_hernandez_portada.htm.
[12] O governo da Venezuela foi o primeiro comprador latino-americano de armas em 2012, e o segundo no período 2003-2012. Os dados que avalizam esta informação estão na página do Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI) (http://milexdata.sipri.org) e na página da Internacional de Resistentes à Guerra (WRI/IRG) (http://www.wri-irg.org).
[13] http://www.revolucionaldia.org/foro/viewtopic.php?p=129877&sid=56e4010d74ac736705fcce03dfa229af. Álvarez expõe com amplidão o referente a esses dados no capítulo 8 de seu livro Venezuela: ¿Hacia Dónde Va el Modelo Productivo?, Caracas, C.I. Miranda, 2009, acessível em http://es.scribd.com/doc/35057361/Venezuela-%C2%BFHacia-donde-va-el-modelo-productivo-Victor-Alvarez.
[14] Publicado en 2010 como coedição de Libros de Anarres (Buenos Aires), LaMalatesta (Madrid), Tierra de Fuego (Tenerife), La Cucaracha Ilustrada e El Libertario (Caracas). Acessível em http://issuu.com/ellibertario/docs/revespectaculo_web.
[15] http://www.reportero24.com/2011/03/corrupcion-casas-uruguayas-en-el-limbo/.
[16] Mais informação sobre a IIRSA em http://periodicoellibertario.blogspot.com/search/label/IIRSA; para o Plano América Central (antes PPP), ver http://www.soberania.org/Articulos/articulo_4242.htm, http://www.aporrea.org/actualidad/a134530.html e http://www.aapguatemala.org/03_publicacions/cuadernos/descarrega/1cuadernos_ppp.pdf.
[17] http://materialanarquista.espiv.net/2012/03/23/entre-la-plataforma-y-el-partido-las-tendencias-autoritarias-y-el-anarquismo/ (traduzido para português em http://livrya.noblogs.org).
[18] http://periodicoellibertario.blogspot.com/2013/01/la-aceptacion-del-concepto-de-poder.html.
[19] Editado por Libros de Anarres, Buenos Aires 2011. Accessível em http://www.librosdeanarres.com.ar/sites/default/files/Los%20sediciosos%20despertares%20de%20la%20anarquia.pdf.
[20] http://rafaeluzcategui.wordpress.com/2010/12/09/grupos-libertarios-y-poder-popular-dinamitando-el-anarquismo-desde-adentro/.
Publicado originalmente como
“Funerales de Estado, Amnesia y Anarquismo”
em Tierra y Libertad, nº 298, Madrid, maio de 2013
Traduzido por Cami Álvares Santos