Patrick Rossineri
Ao menos como se entende de maneira geral pela esquerda, o “poder popular” seria uma proposta para construir o socialismo mediante um modelo de democracia participativa, que reestruturaria a organização sobre a qual o Estado se sustenta. O poder popular estaria fundado na velha ideia de vontade geral de Rousseau, transferindo as atribuições do governo ao povo, instituído em organizações assembleístas de base e elegendo mediante voto os representantes no governo popular.
Esta política requer a tomada do governo para impulsionar a transferência anteriormente mencionada, mas de forma gradual para transformar a democracia representativa em participativa, e alcançar o socialismo pelo caminho do poder popular. Ou seja, concebe-se um objetivo supostamente revolucionário por um caminho reformista, temperado com jargão nacionalista, socialista e anti-imperialista. Este foi um experimento que ficou truncado no Chile em 1973 pelo golpe de Pinochet contra o governo de Salvador Allende, e faz parte do cânone ideológico da Venezuela de Hugo Chávez e da Cuba pós-bloco socialista, que recupera a ordem guevarista de desenvolver no povo os “gérmens do socialismo”. Este tipo de projeto reformista e autoritário, defendido pela esquerda nacionalista e burguesa, tem sido repudiado desde sempre pelos anarquistas e seus teóricos mais influentes, Bakunin e Malatesta, entre outros.
Todavia, há algum tempo muitos companheiros libertários latino-americanos (argentinos, uruguaios, colombianos e brasileiros) publicam declarações a respeito da necessidade de que nós anarquistas “construamos o poder popular”, lutando pela socialização do poder a fim de que ele não se converta na posse de poucos. A ideia que é proposta apontaria para a construção de um movimento libertário antidogmático, aterrissado na realidade e conectado com as lutas populares.
Estas formulações, como bem pressupõem seus autores, poderiam parecer “uma contradição irresolúvel” a todo “lutador ou lutadora da liberdade”. Na realidade não parecem, mas são uma contradição irresolúvel. Mas antes de responder por que são, vejamos em que consiste esta proposta.
Em um documento intitulado Anarquismo y Poder Popular, da Red Libertaria Mateo Kramer, da Colômbia (http://redlibertariapopularmk.entodaspartes.net/), faz-se a seguinte pergunta:
O poder deve ser entendido unicamente como uma imposição autoritária, como um poder sobre? Não pode-se compreender o poder de outra forma, ou seja, como um poder-fazer coletivo, um poder-construir em conjunto? São os de cima, aqueles que mandam, os que nos têm feito crer que o poder é um “objeto” do qual eles têm posse, uma “coisa” desgrudada das relações sociais, um aparato transcendente de sujeição. Mas, em troca, nós, de baixo, concebemos o poder de outra forma: não como uma “coisa”, mas como uma “relação”, como um poder social alternativo e libertador. Assim, nosso poder é principalmente uma capacidade coletiva de imaginar e de criar no aqui e agora uma nova sociedade.
Aqui surge uma confusão na pergunta que vai afetar toda a análise posterior. O termo poder tem múltiplas acepções, significados e interpretações, por seu caráter polissêmico. Podemos falar de poder como uma relação de domínio, como a capacidade de fazer, como posse de algo, força, capacidade de provocar efeitos de verdade, mando, coerção e, finalmente, o governo de um país.
Claramente, na pergunta se confunde a acepção da relação de domínio (primeira pergunta) com a acepção capacidade de fazer (segunda pergunta). Para maior embrulho, o raciocínio segue propondo deixar de ver o poder como um objeto ou instrumento e tomá-lo como uma relação, mas desdenhando que as relações de poder sejam relações de domínio, e novamente propondo um poder como “capacidade coletiva de imaginar” (ou seja, uma competência, e não uma relação).
Depois de semelhante enredo, seria lícito perguntar-se se tudo se reduz a preferir uma acepção a outra ou a considerar que os anarquistas sempre foram tão obtusos para terem sempre confundido o poder com uma “coisa” e nunca perceberem que era uma relação de domínio. Como se o ato de pensar no poder em seu aspecto relacional o convertesse em “um poder social alternativo e libertador”, e não em uma relação assimétrica de domínio. O capitalismo, entre outras coisas, também é uma relação social assimétrica (de exploração e de domínio), e com certeza não ocorreria a estes companheiros esquecer este aspecto para propor um “capitalismo social alternativo e libertador”.
Na realidade, nós anarquistas negamos o poder político, a capacidade de domínio de uma instituição, de um grupo ou de um indivíduo sobre outras pessoas, o poder como sinônimo de governo. Ou seja, toda a teoria anarquista é fundada sobre uma crítica ao poder e aos efeitos que ele produz, expressos objetivamente nos meios, instituições, dispositivos e instrumentos materiais através dos quais o domínio é exercido, mas também subjetivado nas relações assimétricas onde alguns decidem e mandam enquanto outros obedecem e executam. Anarquistas nunca propuseram o poder popular, nem o poder para uma classe, precisamente porque apontavam para esse aspecto relacional do poder, onde se uma classe ou grupo (mesmo que fosse majoritário) exercesse poder sobre outro, ele se converteria em relação de domínio (assimétrica). Quem possui o poder exerce controle sobre a conduta de quem o sofre. Não existem relações de poder simétricas, porque quando existe simetria e reciprocidade em uma relação social é porque o poder deixou de existir.
No documento também se afirma que “para que este poder coletivo seja popular, o agente não pode ser outro senão o povo, esse sujeito plural que é definido pela reunião das classes subalternas, dos marginais, dos desprovidos, dos excluídos”. Além da obviedade da proposição, percebe-se uma valorização do popular como positivo por si mesmo, o que pode ocasionar certos conflitos. O popular não está isento de acarretar certos lacres sociais, como o sexismo, o nacionalismo ou o racismo, para mencionar os mais habituais. Se algo fosse definido como popular tão somente porque o agente “povo” o produz, e se definirmos o povo gramscianamente como classes subalternas, deveríamos aceitar também que dentro desse povo há grande quantidade de elementos sociais, culturais, políticos e econômicos burgueses incrustados, que incluem tanto a dona de casa, o vendedor ambulante e o operário, como a polícia da esquina, o dono de uma quitanda ou um torcedor de futebol barra brava. A essência popular é precisamente esse caráter policlassista, que conjuga elementos revolucionários e conservadores, proletários e burgueses, libertários e autoritários.
Se – como afirmam – o poder popular é uma nova forma de relação, e propõe pôr “em marcha um novo ethos”, criando “outro mundo possível, um mundo distinto que enfrenta o que já conhecemos”, e ao mesmo tempo “é uma práxis que na mesma medida na qual vai transformando os lugares de vida das pessoas cria um bloco contra-hegemônico, um bloco que entra em confronto direto com a ordem imperante”, então o poder popular pleiteado desta forma começa a ter pontos em comum com o poder popular conforme entendido historicamente pela esquerda.
Este poder apresenta-se como uma antecipação da sociedade futura, como uma prática gradualista, que propõe substituir o Estado e o capital. O que não se explica é como uma cultura horizontal e libertária, participativa e inclusiva possa ter cabimento em uma sociedade que é sua completa negação, em que os meios de comunicação, educação, exploração e repressão estão nas mãos de quem realmente detém o poder. Claro que existem práticas solidárias, ajuda mútua, cooperação, altruísmo e atitudes libertárias no seio do povo, mas isto é mais inerente à condição humana que ao ethos popular. É simplesmente uma ilusão crer que por propugnar o poder popular (como quer que isto seja entendido) vamos estar mais perto da autolibertação das massas. O sistema capitalista demonstrou uma grande capacidade de absorção de todos os movimentos populares, de todo tipo: Venezuela e Cuba são exemplos muito bons disto. Quando os governos que realmente exercem o poder concedem excepcionalmente a possibilidade de que as pessoas pratiquem alguma forma de autogestão, sempre é sob a permissão e a supervisão direta ou indireta, quando não sob interesse, do Estado.
É um erro conceber que “o anarquismo que quer socializar os meios de produção também quer socializar o poder e evitar que este se converta no privilégio de poucos”, precisamente porque isso seria socializar a assimetria, fazendo do poder o “privilégio da maioria”, e onde uma maioria denominada “popular” impõe para o resto “menos popular” sua visão particular. É uma ingenuidade perigosa supor que o dito poder popular criaria “espaços alternativos de vida coletiva, lugares materiais e virtuais que escapam do controle do capitalismo e da autoridade”. Mais ainda quando todas as experiências históricas demonstraram exatamente o contrário, e nunca pôde coexistir um espaço libertário por muito tempo em uma sociedade estatal sem enfrentar-se com ela (como na Ucrânia ou em Kronstadt e a revolução espanhola) ou sem ser absorvido pelo capitalismo e pelo Estado, como em Cuba ou na Venezuela bolivariana, onde o Poder Popular funciona como mecanismo de autorregulação capitalista.
Contrariamente ao que a Red Libertaria Mateo Kramer sustenta, nós anarquistas devemos aspirar à destruição de toda forma de poder, sem deixar de nos organizar igualitária e livremente, propugnando que o povo se autoliberte, porque as perspectivas políticas do populismo e do socialismo burguês sempre serão reformistas, aspirando no máximo a um capitalismo gestionado pela classe operária, mediante cooperativas, sindicatos, partidos políticos ou o “Estado Popular”.
Ser anarquista implica em estar contra o poder em todas as suas formas, não somente contra “algumas formas de poder”. O poder coletivo não é ausência de poder, do mesmo modo que um capital coletivo não é ausência de capital. Ser anarquista não pode ser reduzido a enfrentar o poder burguês, seus agentes econômicos, culturais e políticos. Não podemos fazer do povo ou do poder popular um fetiche adorado, o qual pressupomos ser intrinsecamente revolucionário. Do contrário, poremos o povo no trono para ser seu próprio opressor, alienado de si mesmo, um Poder Popular negador da libertação humana e que, parafraseando Bakunin, não será menos prepotente porque recebeu o rótulo de “poder do povo”.
Artigo publicado originalmente como
“La Quimera del Poder Popular: Una Forma de Integración al Sistema”
em Libertad!, nº 52, Buenos Aires, julho-agosto de 2009
Traduzido por Cami Álvares Santos